Existe uma obra do espanhol Salvador Dalí que se chama A Persistência da Memória. Você conhece ela: é o famoso quadro dos "relógios moles". O artista teria pintado ele em apenas cinco horas, em 1931: enquanto a sua esposa foi a cinema, se dedicou a sua arte. E pra mim é meio paradoxal pensar que uma tela executada em tão pouco tempo seja uma das mais importantes daquele período. E que diga tanto a respeito da permanência da arte. De como ela fica enquanto memória VIVA do passado. Dalí era um surrealista, então naturalmente suas obras vinham carregadas de forte simbolismo. De representações complexas e de significados diversos. No caso de A Persistência..., pode-se dizer que o quadro é metalinguístico: o tempo escorre. Mas fica. Como memória. Como no caso da obra de um artista. E talvez Meia Noite em Paris (Midnight In Paris) seja também sobre isso. Sobre nostalgia, sobre lembranças. Sobre artistas que se vão e sobre produções culturais que ficam. Eternizadas. Em nossas retinas.
Salvador Dalí (Adrien Brody) é uma das tantas figuras vistas em "carne e osso" na obra de Allen. Representam o passado sonhado e idealizado por Gil (Owen Wilson), um escritor de roteiros de cinema que acredita que o tempo bom - da efervescência cultural, de experiências transformadoras nas artes -, está simbolizado na Paris dos anos 20. Época em que figuras como Pablo Picasso (Marcial Di Fonzo Bo), Ernest Hemingway (Corey Stoll) e o casal F. Scott (Tom Hiddleston) e Zelda Fitzgerald (Allison Pill), trocavam "figurinhas" na casa de uma agitadora Gertrude Stein (Kathy Bates). Idealizar o passado, acreditando que aquele tempo era melhor que o presente: é isso que Gil faz. E, assim, acaba arrumando briga com a sua noiva Inez (Rachel McAdams), que vê no revisionismo do sujeito uma espécie de inadequação. Aliás, é após um desentendimento, que Gil resolve caminhar solitário pelas ruas da capital francesa, sendo transportado diretamente para esse universo em que materializará o encontro com os ídolos.
Na real, a meu ver, o filme é uma grande homenagem às artes. E sobre como as obras dos artistas que amamos permanecem conosco até hoje, mesmo após a morte de todos eles. Idealizar os anos 20 tem a ver com sonhar com as festas luxuosas dadas pelo Gatsby de Fitzgerald ou com os quadros oníricos de Dalí - caso do A Persistência da Memória. A gente tende a achar, afinal, que não se faz mais música como antigamente, que os filmes de hoje não são como os de outra época, cheios de grandes astros e estrelas. Mas será mesmo? Será que somos seres eternamente insatisfeitos TAMBÉM no que diz respeito ao consumo de produtos culturais? SE fosse para este jornalista que vos escreve dar uma simples opinião eu diria que discordo de Gil: as manifestações culturais, afinal de contas, nunca foram tão plurais e democráticas. Destinadas aos mais variados nichos. E não objeto de apreciação de um seleto grupo.
Estabelecendo diálogo com as próprias artes que analisa, Allen filma Paris com uma beleza poucas vezes vista - suas praças, museus, espaços públicos, comércios. Há algo de artístico também, de nostálgico talvez, na busca por um disco perdido do Cole Porter em um sebo em que uma moça atenciosa lhe aborda. Ou mesmo no charme de um café a beira da calçada em um bistrô. Ou de caminhar na chuva mesmo, em meio a noite profunda e efervescente de Paris, seus cartões postais e locais de encontro. Allen transforma Paris na arte em si: grava-a em nossa retina. Nos faz sonhar, reimaginar, evocar. E faz tudo isso com uma ótima história, recheada de referências culturais divertidas - a parte em que Gil sugere o roteiro de um filme para Buñuel é ótima! -, com ótima trilha sonora e desenho de produção cheio de beleza. Olhar para o passado, no fim das contas, é algo que nos faz bem. Mas a vida é agora: pra frente. E ela pode acontecer. Em meio a chuva de Paris - ou não. Basta se permitir.
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