De: Orson Welles. Com Orson Welles, Joseph Cotten, Dorothy Comingore e Agnes Moorehead. Drama, EUA, 1941, 118 minutos.
Um cavalo de corrida? Uma garota inesquecível? Algum lugar nostálgico? Uma memória que nos enche de saudade? É inegável que, até os dias de hoje, os mistérios envolvendo a palavra Rosebud, permanecem na mente (e na retina) de qualquer cinéfilo. Dita por Charles Foster Kane (Orson Welles) ainda no começo do clássico Cidadão Kane (Citizen Kane), a sentença servirá como uma espécie de guia para a narrativa vertiginosa daquele que é tido, por muitos críticos e veículos de imprensa, como o maior filme de todos os tempos. Kane estava em sua grande mansão - conhecida como Xanadu -, quando profere a palavra. Prestes a morrer, ele segura em suas mãos um pequeno adorno, daqueles vendidos em casas de quinquilharias, que replica uma casa de aspecto simples, envolta em neve. Nós, espectadores, pouco sabemos a respeito. Os jornalistas e documentaristas que divulgam o fato tampouco. E essa será a deixa para que voltemos no tempo, para contar a história dessa figura tão charmosa quanto controversa.
Vamos combinar que em 1941, ano de lançamento da obra-prima dirigida pelo próprio Welles (que tinha 25 anos à época), não eram lá muito comuns trucagens técnicas como flashbacks, fusões de imagens, quebras de quarta parede, sobreposições de fotografia e narrativa não-linear. Famoso por quebrar paradigmas, o filme também permanece inabalável como um estudo de personagem: inspirado livremente no magnata da mídia William Randolph Hearst, Kane é retratado com complexidade, ao se apresentar ao mesmo tempo como um sujeito empático a causa de trabalhadores, mas que não dispensava o uso da violência (física, psicológica, moral), se assim achasse necessário. Assim, o rosário de amores e mágoas descritos por amigos, ex-mulheres e antigos colegas, dá conta da verdadeira colcha de retalhos que representava a personalidade do protagonista: em sua investigação, os jornalistas mergulham fundo para encontrar uma infância de abandono materno, mas de muito conforto material, de afabilidade com aqueles que gosta, mas de truculência com eventuais "inimigos".
E talvez esteja aí um dos charmes de Cidadão Kane: como obra, acaba sendo muito lembrada pelos fãs de cinema por suas inovações (e confesso que fico embasbacado toda vez que revejo sequências como aquela em que a câmera, instalada em uma espécie de grua, mergulha por sobre um telhado de vidro, enquanto a chuva cai lá fora de forma intermitente). Mas é preciso salientar que a película de Welles segue como um grande e completo filme, cheio de camadas, e idas e vindas e de incertezas na cabeça do espectador. Não há soluções fáceis. Nada é definitivo. Rosebud? É um detalhe. Mais enigmática do que a palavra é o próprio protagonista: uma figura indócil, imprevisível e cativante, que nos será revelada a partir de um verdadeiro caleidoscópio de informações vindas daqueles que ficam - caso do amigo Jebediah Leland (Joseph Cotten) e de sua amante Susan (Dorothy Comingore). Aliás, ao primeiro, mesmo sem nenhuma instrução, garantiu um posto de colunista em seu jornal. Para a segunda, construiu um teatro exclusivo para que pudesse cantar (mesmo sem talento). Acabou descartando os dois na mesma velocidade com que os acolheu.
Nesse sentido, Cidadão Kane segue como um filme que envelhece muito bem. Cultuado, é ainda repleto de frases de efeito, que resumem os tempos pós-depressão de 1929, período em que o sonho americano ainda era gestado como uma espécie de ideário que integrava o New Deal. Em certo instante, Jennings (Joe Manz), um dos jornalistas que investiga o nascedouro da expressão que origina tudo, divaga: "nenhuma palavra pode explicar a vida de um homem. Acho que Rosebud é só uma peça de um quebra-cabeças. Uma peça que falta". Dita enquanto a câmera se afasta em um amplo plano aéreo, a sentença serve como uam espécie de epílogo ideal para uma obra tão rica, tão cheia de camadas e que, não por acaso liderou a lista da prestigiosa Sight and Sound durante cinquenta anos seguidos (de 1962 a 2012) - o posto só foi tomado na mais recente relação pelo igualmente clássico Um Corpo Que Cai (1958). Cheio de controvérsia, o filme ressurgiu no imaginário coletivo a partir do indicadíssimo ao Oscar Mank (2020), lançado no ano passado. Uma homenagem, por sinal, mais do que justa.
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