quarta-feira, 4 de março de 2020

Lado B Classe A - Radiohead (Kid A)

Bug do milênio, tecnologia desenfreada, superpopulação, novas mídias, degradação do meio ambiente, individualismo, doenças, mal estar, paranoias... poucos discos conseguiram traduzir a ansiedade coletiva do mundo, na virada dos anos 2000, quanto este Kid A, do Radiohead. Era um tempo de mudanças, definitivamente - algo que se estendia também para o mundo da música. O pós-grunge do Creed e o hardcore melódico de coletivos como Blink 182, já tinham nascido desgastados e bandas como Red Hot Chili Peppers e Foo Fighters persistiam, já naquela época, em tipo de rock de estrutura mais convencional. Na eletrônica não era diferente já que parecia faltar aquele aceno para a modernidade, mas de forma mais imersiva, transformadora - algo que fosse para além dos celebrados inferninhos trazidos à tona por bandas como Underworld e Spiritualized. Era preciso buscar algum oxigênio nesse contexto que mergulhava em algo que não sabíamos mais aonde iria parar. E que vinte anos depois, vamos combinar, parece que ainda não sabemos. Ou sabemos menos.

Nesse sentido foi estranho ouvir o Kid A quando ele foi lançado. Na mesma época em que conseguia comprar o meu primeiro celular - uma coisa meio rudimentar da Nokia, que levava o nome de 5120 -, começava a ler as primeiras e elogiosas resenhas nas revistas do coração (especialmente a finada Bizz). E eu já sabia que o Radiohead era diferente por que, naquele momento, o Ok Computer, já era um dos discos da vida. Um registro que me apresentou à lógica de mundo daquele universo torto, de yuppies capitalistas persistentes e trabalhadores, de naves alienígenas que podem aparecer, de decadência e de melancolia, de reações químicas e de rotina, de corações sofridos e de doenças que não curam. A verdade é que o trabalho de 1997 - talvez empatado com Nevermind do Nirvana na estante dos melhores dos anos 90 -, já se apresentava como um grande ensaio para o Kid A. Um ensaio que tentava diagnosticar o mundo - e que retirava definitivamente da lógica guitarra, baixo e bateria, a estrutura do rock convencional como a conhecíamos até então. Bom, não é exagero dizer que aquilo tudo meio que reinventou o rock para o novo milênio.


Sobre as músicas, um caldeirão de estilos, de texturas, de melodias, de andamentos. Quebras de lógicas. Idas e vindas no tempo. Estruturas alteradas. Ausência total de refrões. Ideais que se repetem e se repetem, como no caso da abertura com Everything in Its Right Place em que a frase que nomeia a canção é repetida como um mantra polifônico, enquanto uma base feita ao piano aproxima a música para as tensões da ficção científica cheia de suspense das megalópoles cosmopolitas. Aliás, um tipo de ideia geral que se repetirá em outros momentos e que servirá de norte para o registro - como no caso da autoexplicativa (e fantasmagórica) How to Disappear Completely ou na ruidosa The National Anthem, com sua linha de baixo e seus sopros envolventes. Até chegarmos a colorida (se é que se pode chamar assim) Motion Picture Soundtrack, - que parece extraída de algum filme da Disney na deep web -, há espaço para a dança hipnótica no bunker durante a era do gelo de Idioteque, para a psicodelia onírica de Morning Bell e até para algo que se pode considerar uma canção comercial, a despeito da letra pessimista, caso de Optimistic (que parece um Lado B de Ok Computer).

Bom, se você nunca escutou na vida o Kid A, é muito provável que as palavras não sejam suficientes para consolidar o poder transformador desse registro absolutamente diferente de tudo que já tínhamos ouvido até aquele momento. Bom, pra se ter uma ideia, corria uma lenda na época (e eu não consegui confirmá-la na internet), de que as pessoas estavam devolvendo o disco às lojas, falando que ele estava com problema, que as canções pulavam, que eram estranhas - e uma audição nem muito atenta da já citada Everything in Its Right Place faz com que essa história seja perfeitamente crível. O que dá conta também das técnicas de gravação nada ortodoxas, eventualmente robóticas, ainda que, paradoxalmente, orgânicas, calorosas. Pode não ser um álbum fácil. Bom, não é um álbum fácil. Mas quem se entregou a ele, persistiu, descobriu definitivamente a música que resumiu a década passada em 53 minutos de duração. Não foi por acaso que o Pitchfork o escolheu o melhor daquele período. Não é por acaso que ele figura em tudo quanto é lista de melhores daqueles anos. Um trabalho que segue ecoando. Ecoando como uma antena que capta e replica fragmentos e transmissões que conversam com um universo que ainda não sabemos qual será. E isso não é pouco.


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