Filmes recentes como Desobediência (2017) ou clássicos literários como Complexo de Portnoy, de Philip Roth, já utilizaram o conservadorismo das comunidades judaicas, suas tradições e hábitos - muitos deles antiquados - como matéria-prima. Em O Despertar de Motti (Wolkenbruchs Wunderliche Reise in Die Arme Einer Schickse), o representante da Suiça na última edição do Oscar, o tema volta à carga em uma comédia meio bobinha (mas divertida) que conta a dura história do jovem Motti (Joel Basman), que precisa fugir de sua mãe dominadora (a ótima Inge Maux) para tentar decidir os rumos de sua vida. Sim, por que para os judeus ortodoxos, os caminhos de um homem já estão traçados desde o berço: crescer, rezar, estudar, dar continuidade aos negócios do família, participar de um casamento arranjado (meio a contragosto) com uma outra mulher judia e procriar. Ter vários filhos, de preferência. Se dedicar a eles. Envelhecer. Morrer. Fim.
Bom, é evidente que ninguém gosta de nascer já sabendo exatamente como vai ser a sua vidinha e será ao ir para a faculdade que a persona "travada" de Motti vai começar a dar uma arejada. Especialmente após conhecer a jovem Laura (Noémie Schmidt), uma colega de aula não-judia (conhecida como shiksa no linguajar iídiche), que vai despertar aquela paixonite juvenil no rapaz. Só que o casamento com pessoas que não integram a religião judaica é terminantemente proibido pelos ortodoxos. Aliás, é um ato impuro. Só que Motti começa a ficar meio de saco cheio quando, próximo dos 20 anos de idade, percebe que a sua mãe decide tudo na sua vida: dos óculos que usará a roupa que vestirá. Aliás, fazer a barba, usar uma armação de óculos mais "ousada", serão pequenas subversões que mostrarão a nós, espectadores, que o jovem está mudando. E ao se distanciar das tradições anacrônicas da religião dos pais, estará estabelecido o conflito. O que renderá boas risadas.
Ok, não é uma comédia inesquecível que vá mudar o planeta. Mas tem seus momentos. A quebra da quarta parede, por exemplo, é uma clara homenagem ao judeu mais famoso do cinema (aliás, ele é citado como uma referência em um hilário debate em meio a um jantar de família) e que renderá instantes de pura graça, como na parte em que Motti narra o quão previsível é a vida de um jovem judeu. Os encontros frequentes com Michèle (Lena Kalisch), impedem o projeto de resvalar para o machismo, já que fica claro que os casamentos arranjados são um problema, independente de gênero. E a relação de pura cumplicidade entre o jovem protagonista e seu pai (Udo Samel) também rendem risadas, já que eles estabelecem uma espécie de aliança, que visa a confrontar a mãe dominadora. E há ainda uma outra personagem, vivida por Sunnyi Melles, que representa o ponto de equilíbrio: em seu leito de morte, ajudará Motti a tomar decisões a partir da leitura as cartas e de outras trucagens.
Ainda que eventualmente o projeto possa parecer meio esparso e até resvale em um ou outro momento para o melodrama barato, ele tem a sua lógica de funcionamento no batido clichê que diz que os filhos são "criados para o mundo" e que sua independência deve ser preservada - por mais que isso doa para algumas religiões mais fechadas. A ida de Motti a Tel Aviv, por exemplo, pretendia "curá-lo" de um mundo de perdição (imagina só um jovem beber, ir em festas e conhecer garotas?), mas na capital israelense ele descobre o contrário: que a vida é imprevisível e que é por isso que ela é bela. E a sua mãe terá que, definitivamente, lidar com isso. Com boa montagem e uma leveza contagiante, o filme serve direitinho para aplacar as nossas dores nesses tempos de corona: nos faz sorrir descompromissadamente e ainda brinca com a ironia de acompanharmos um protagonista que se liberta de uma situação incômoda. E que descobre, ainda em tempo, que nunca é bom se sentir preso.
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