segunda-feira, 23 de março de 2020

Grandes Filmes Nacionais - O Auto da Compadecida

De: Guel Arraes. Com Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Denise Fraga, Fernanda Montenegro, Diogo Vilela, Lima Duarte, Rogério Cardoso e Paulo Goulart. Comédia, Brasil, 2020, 104 minutos.

É muito provável que vocês já tenham assistido uma das tantas adaptações de O Auto da Compadecida. Talvez até mais de uma - pro teatro, pra TV, pro cinema. Muitos de vocês devem ter lido o livro. Aliás, essa é a legítima obra que dispensa comentários. Mas então por que falar do trabalho mais importante do Ariano Suassuna? Bom, no curso normal dos posts do Picanha ele já seria naturalmente reverenciado em 2020 já que o filme dirigido por Guel Arraes. tão carinhosamente recordado pelo público, completa 20 anos de seu lançamento em setembro. Sim, vinte, acredite! Mas o caso é que resolvemos antecipar um pouco a homenagem, afinal de contas, em tempos de Coronavírus, acho que é bacana revisar uma obra que dá valor as coisas simples, que é divertidamente malandra, que é iconoclasta, provocativa, regionalista. Que nos faz rir do absurdo, que nos faz crer numa espécie de surrealismo à brasileira. Enfim, em tempos de caras fechadas e distanciamento social, O Auto da Compadecida nos faz o favor de lembrar que ainda temos motivos para sorrir. Aliás, teremos muitos motivos para sorrir, ainda!

Sobre o filme em si, Guel Arraes reuniu um dream team de atores, para contar a história de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), dois sertanejos pobres, que adotam a brejeirice como estilo de vida. Chicó é um pouco mais medroso, sempre desconfiado dos planos de João Grilo, que é a "cabeça pensante" da dupla e que armará uma série de estratagemas para tentar se dar bem - especialmente em um cenário de aridez e de indigência. Aliás, o comportamento errático da dupla já é estabelecido nas primeiras sequências quando enganam a dona Dora (Denise Fraga), esposa do padeiro Eurico (Diogo Vilela) - que são seus patrões -, para tentar comer a comida do cachorro (que é mais caprichada que a deles). Aliás, em meio a maracutaia todo o bichinho morre, já abrindo espaço para a próxima maracutaia: tentar convencer o padre local (o falecido e sempre ótimo Rogério Cardoso) a fazer o enterro. O que será obtido com uma boa dose de ofertas financeiras, obtidas de maneira escusas.



E aqui está, a meu ver uma das marcas de O Auto da Compadecida: a de fazer a crítica social na base do deboche, em suas entrelinhas, sem um panfletarismo escancarado, que poderia afastar o espectador médio. E, nesse sentido, são vários os exemplos até já comentados: o do bife do cachorro do patrão ser melhor do que a comida do empregado, o das estreitas relações (e interesses) da Igreja com as classes mais abastadas, que são melhor tratadas - aliás, a cena em que Lima Duarte muda de ideia sobre o enterro do cãozinho ao descobrir quem, supostamente, eram seus donos, é uma das melhores -, a suposta necessidade de o homem ser sempre um "machão". E há ainda, claro, o papel da mulher na sociedade - com a ruptura do caráter de submissão sendo representado pelo papel de Rosinha (Virgínia Cavendish), que ajuda João Grilo e Chicó a enganar o seu pai, o fazendeiro Major Moraes (Paulo Goulart, que está ÓTIMO), para tentar casar com Chicó.

Para que tudo flua com mais graça, Arraes emprega um estilo dinâmico de montagem com cortes secos, elipses, idas e vindas. Muitas câmeras em close que ressaltam os dentes podres e olhar enviezado de João Grilo e a timidez desconsolada, misturada com medo permanente de Chicó. Com desenho de produção bastante naturalista e figurino eventualmente colorido, a obra ainda envereda para um faroeste "tupiniquim" em seu terço final, quando o bando do cangaceiro Severino (Marco Nanini), invade a cidadela, toca o terror e mata um monte de gente - incluindo boa parte dos protagonistas. Aliás, o próprio Severino morrerá, em mais uma arapuca de João Grilo (lembram da gaita de boca?). E será no outro plano que a Compadecida em pessoa (Fernanda Montenegro e quem mais seria, né?) aparecerá para fazer uma espécie de julgamento dos justos, que também contará com a mediação do diabão (Luis Melo) e de Jesus Cristo (Maurício Gonçalves).


Sexagésimo terceiro melhor filme brasileiro da história, de acordo com lista divulgada em 2016 pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) - o que para um filme de comédia é certamente um feito -, a película ainda é marcada pelos diálogos rasgantes, recheados por um regionalismo de raiz. É o caso, por exexplo, do instante em que um dos capangas do bando de Severino afirma que matar padre da azar, ao que o religioso responde: "especialmente para o padre". E ainda que a marca da obra de Ariano Suassuna seja a graça, jamais devemos esquecer que trata-se de um trabalho pontuado por críticas sociais bem construídas, de pessoas lutando pra sobreviver em meio as dificuldades e que, de quebra, ainda traz valiosas lições sobre perdão, amor, importância da amizade e religiosidade. Um dos melhores filmes de nossa história, sem dúvida.



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