Não é de surpreender o fato de que as distopias imaginadas por autores de ficção científica, traduzam tão bem os tempos que vivemos. E o mais intrigante: muitas delas se mantém inadvertidamente atemporais, ainda que se refiram a uma realidade que, a exceção do campo das metáforas, não existe. Quando escreveu Fahrenheit 451 (Fahrenheit 451) o inglês Ray Bradbury tinha a intenção de criticar a presença da televisão nos lares europeus. E também o fato de esta diversão puramente hedonista e eventualmente pobre do ponto de vista intelectual, ser capaz de destruir o interesse das pessoas pelos livros. Mas quando somos surpreendidos por notícias como a desta semana, relativas ao cancelamento de uma exposição artística no Santander Cultural, em Porto Alegre, percebe-se que a ficção proposta por Bradbury, adquire outros sentidos. Sentidos dolorosamente mais atuais, diga-se.
Filmada por François Truffaut em 1966, a trama se passa em um futuro próximo, onde, em um Estado totalitário, os "bombeiros" têm como principal função localizar e queimar qualquer tipo de material impresso. "Os livros trariam infelicidade, tornando também as pessoas antissociais", declara um membro dessa brigada, em determinado momento da película. Só que o protagonista Montag (Oskar Werner), ainda que cumpra o seu dever com zelo - ele, inclusive, está próximo de receber uma promoção - passa a questionar o sistema após se aproximar de uma revolucionária professora e também ao ver uma mulher preferir ser queimada junto com a sua ampla biblioteca ao invés de permanecer viva. Evidentemente que o comportamento suspeito de Montag chamará a atenção de seus superiores, não demorando para que passe ele a ser o perseguido pela mesma brigada em que atua.
Ainda que não seja tão literal em sua provocação, tanto livro como filme permitem traçar um paralelo em relação aos dias de obscurantismo que vivemos hoje em nosso País, com a cultura sendo relegada (pasmem!) a condição de "vilã" dos gastos públicos - afinal de contas o minguado orçamento destinado anualmente à peças de teatro, exposições, filmes e espetáculos poderia, de acordo com os economistas de plantão (e a internet está cheia deles), ser bem melhor empregado em saúde ou segurança pública. Pra quê pensar? Pra que buscar procurar sentido diante daquilo que nos tira da zona de conforto? Pra que promover a reflexão a partir da arte - como se os quadros e instalações vistos na exposição do Santander não servissem, eventualmente, como uma forma de expurgo para os males de nossa sociedade? Ou mesmo de transgressão? Ou vá lá, da simples visão/ideia de algum artista? Para quê tentar compreender o que está por trás de uma obra, se é tão mais fácil "queimar os livros"? "Eles fazem mal, tornam as pessoas ruins, e promovem comportamentos inadequados e antissociais", lembra o filme.
Longe de ser o melhor filme de Truffaut - Os Incompreendidos (1959) e Jules e Jim - Uma Mulher Para Dois (1961) seguem sendo os preferidos da casa - Fahrenheit 451 merece crédito por se manter essa espécie de líbelo da importância da liberdade artística, em meio a regimes totalitários. Especialmente em um período trevoso em que o "planeta" parece ser devastado por uma onda conservadora, retrógrada e, aparentemente, incapaz de compreender a arte e todo o seu espírito iconoclasta, como veículo promotor de debates e de questionamento do status quo estabelecido. Nesse sentido, enquanto na trama as "pessoas-livro" são mostradas como sujeitos empáticos e generosos, figuras como a esposa de Montag, Linda (Julie Christie), parecem apenas preocupadas com aquilo que sairá do televisor, com a sua aparência e com a vida amplamente vazia e fútil, ao lado das amigas. O que dá uma dimensão da diferença de comportamento entre aqueles que apreciam as artes - e seu poder humanizador - e os demais. Não que seja regra, claro.
Compartilhado 2x. Página do Núcleo da Diversidade do DCE/Univates e pessoal. Abraço.
ResponderExcluir