terça-feira, 31 de março de 2020

Pérolas da Netflix - O Décimo Homem (El Rey de Once)

De: Daniel Burman. Com Alan Sabbagh, Usher Bailka, Julieta Zylberberg e Elvira Onetto. Comédia / Drama, Argentina, 2015, 82 minutos.

"O que há de melhor no homem somente desabrocha quando se envolve em uma comunidade". Pode até parecer meio piegas a frase atribuída à Albert Einstein, mas ela se aplica direitinho a essa pequena joia do cinema argentino chamada O Décimo Homem (El Rey de Once). Por que às vezes a gente pode estar querendo dar algum sentido a nossa existência e somos pegos de surpresa quando esse "sentido" surge de onde menos se espera. E talvez esse seja o caso de Ariel (Alan Sabbagh), o protagonista da película dirigida por Daniel Burman (Ninho Vazio, Dois Irmãos). Ele é um economista bem sucedido que já há muitos anos reside em Nova York, tendo deixado para trás as suas origens judaicas. Com a desculpa de apresentar a sua namorada - uma bailarina cheia de compromissos - aos seus familiares, programa uma viagem para o bairro em que nasceu, em Buenos Aires.

A programação começa a dar errado quando a namorada é impedida de lhe acompanhar, por conta de sua agenda lotada. E tudo só piora quando Ariel chega ao local: com a impossibilidade de ser recebido por seu atarefado pai - um certo Usher (Usher Barilka), responsável por gerenciar a instituição de caridade do bairro -, se vê aos poucos absorvido por uma série de compromissos que, inicialmente, não lhe dizem respeito mas que, aos poucos, vão dando sentido à sua existência. À distância, sempre por telefone, o pai lhe incumbe de uma série de pequenas tarefas: levar um calçado para um excêntrico enfermo, cobrar do (furioso) açougueiro a entrega de carne, ocupar um apartamento não habitado... e será por meio desses pequenos instantes, somados a outros tantos que ocorrem na rotina barulhenta da entidade mantida pelo patriarca, que darão, ainda que por vias meio tortas, alguma cor à sua vida tão esquemática, de sujeito bem sucedido.


Parece um filme minúsculo, e pra falar a verdade é: mas que se torna grande ao valorizar os pequenos instantes, a nostalgia e a sensação de pertencimento a alguma coisa. Na memória afetiva de Ariel, os biscoitos com doce de leite que ele consumia, de forma peculiar, quando criança, serão relembrados em uma cena tocante em seu novo habitat. O absurdo do vazio das relações humanas será suplantado pela balbúrdia das pessoas humildes que rondam a instituição de caridade em busca de comida, roupas e outros suprimentos e pelas pessoas que ali trabalham e trafegam, como a belíssima judia ortodoxa Eva (Julieta Zylberberg), que ganhará importância na segunda metade da obra. É um filme que se passa em apenas uma semana, mas que transforma a vida de seu protagonista, que volta a beber da fonte do judaísmo, seus rituais e seus costumes, para encontrar em sua origem, a essência de algo parecia perdido.

Sim, os mais céticos talvez discordem daquilo que o filme se propõe: ser uma espécie de homenagem às tradições, as memórias e as atitudes boas - sem olhar para quem. Num misto de ingenuidade com pasmaceira, a vida de Ariel parece estar fora de controle, em alguns momentos, para no instante seguinte surgir ordenada, cartesiana, plena de sentido. É uma película que não sobrecarrega nos aspectos técnicos - a trilha sonora é quase nula, o desenho de produção é correto e nunca exagerado (a cidade é muito verdadeira), a fotografia não tem grandes trucagens -, mas que passa seu recado de forma simples, honesta, divertida. Não é o melhor filme argentino - aliás, talvez nem seja o melhor filme de Daniel Burman. Mas ao direcionar novamente a sua lente para o homem comum, que deve lidar com uma situação "nova" em sua vida (assim como ele já fizera no ótimo Abraço Partido), o diretor acerto em cheio. E entrega uma película maior do que sugere seus pouco mais de 80 minutos.



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