Existe uma frase que está no prólogo do livro de Martha Batalha, no qual o filme dirigido por Karim Aïnouz (Madame Satã, O Céu de Suely) se baseia, que resume bem o espírito de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão: "[...] o mais real deste livro está na vida das suas protagonistas, Eurídice e Guida. Elas ainda podem ser vistas por aí. Aparecem nas festas de Natal, onde passam a maior parte do tempo sentadas, com o guardanapinho nas mãos. São as primeiras a chegar e as primeiras a ir embora. Comentam sobre os temperos do bacalhau, sobre os calores ou chuvas do dia ou sobre se o marido vai bem e se a sobrinha-neta já tem namorado. Eurídice e Guida foram baseadas na vida das minhas, e das suas avós". Bom, é o condensado de uma vidinha simplória que resultará em uma terceira idade de frustrações, de sonhos jamais alcançados e de anseios engavetados. São mães, tias e avós que se tornaram invisíveis em uma sociedade patriarcal e altamente machista, com ambas as obras tentando lançar um olhar de ternura para estas mulheres - num contexto que deveria ter ficado no passado, mas que de vez em quando insiste em permanecer.
E na história de Eurídice e Guida isso fica muito claro, afinal de contas, no Rio de Janeiro dos anos 50 o destino das mulheres já estava traçado: casar, ser mãe, cuidar da casa. Deixar para o marido as provisões, mantendo o lar organizado. Trabalhar? Nada. Estudar? Coisa de mulher perdida. E é assim que a gente vai ver como os sonhos e objetivos de vida das irmãs vão sendo despedaçados aos poucos, especialmente neste tipo de tecido social que estabelece o homem como o sujeito forte e a mulher como o sexo frágil. E é por isso que quando Guida (Julia Stockler) resolve fugir de casa para se casar em segredo com um grego de nome Yorgos, o pai Manuel (António Fonseca) lhe renega, afinal de contas não cumprir com as tradições, com as convenções típicas de uma família de bem, implicaria em uma "mancha" para os Gusmão. E tudo piora quando ela retorna anos depois para a casa dos pais, abandonada pelo marido (e pelas promessas de um futuro feliz) e, ainda por cima, grávida. Um conflito que envolve reputações destruídas (ao menos é o que pensam os homens) e mulheres fragilizadas. Aliás, como sempre foi. Segue sendo até hoje.
Já a situação de Eurídice (Carol Duarte) não é diferente: quando a irmã foge de casa, ela se sente abandonada por ela, indo encontrar refúgio em um casamento meio arranjado com o funcionário dos correios Antenor (Gregorio Duvivier) - um sujeito meio pateta, mas que representa um futuro de segurança e estabilidade financeira (que era o que mais interessava na época). Eurídice claramente não ama Antenor com todas as forças. Aliás, o que ela ama mesmo é tocar piano. Gosta demais disso. E, se no livro a oportunidade de tocar com Heitor Villa-Lobos em pessoa é abandonada já na origem, com a jovem tendo embates homéricos com seus pais, no filme esse conflito migra para mais adiante: Eurídice já está casada quando faz uma espécie de teste em um conservatório local. Ela tira o primeiro lugar. Está eufórica para contar para o marido e para o pai a novidade! A euforia se vai embora quando ela conta. "Quem cuidará da casa, da filha?", argumenta Antenor. "Quer que eu passe o espanador?", debocha, fazendo Eurídice retornar efetivamente para a invisibilidade. Para uma vida que ela não deseja. Que ela nunca desejou. Ela nem queria ser mãe. Foi. Por que era o que se esperava das mulheres naquela época. Que respeitassem as convenções sociais. Os patriarcas das famílias.
E se no livro a separação das irmãs é amenizada com um retorno meio inesperado, com Guida contando todos os seus percalços após ter sido expulsa da casa dos pais - indo morar com a prostituta Filomena (Bárbara Rodrigues Santos) e ela mesma se prostituindo para garantir remédios para a própria Filó e para seu filho Chico -, no filme a distância entre as duas é utilizada como um recurso narrativo que funciona, pelo fato de nos importarmos com elas e desejarmos que elas se encontrem em algum momento. Afastada da irmã, Guida lhe envia uma dúzia de cartas que jamais chegam ao seu destino. Pior, uma mentira dita pelo pai faz com que ela acredite que a irmã mora em Viena e que, lá, estuda música. Se por um lado Guida fica feliz com as decisões tomadas pela irmã (que jamais se concretizariam), por outro lhe angustia a distância, que dificilmente permitirá um reencontro. E é nesse ínterim que ambas lutam por alguma coisa em suas vidas. Duas vidas de infelicidades, jamais desejadas, de lutas, de pobreza (financeira e de espírito) e de doenças. De invisibilidade e de nenhum suporte dos homens que lhes rodeiam - que enxergam nelas apenas um amontoado de carnes, ossos, peitos, bundas e coxas que lhes servirão para dar prazer. Mulheres sem escolhas. Senhorinhas do guardanapinho no colo.
Nota: 9,0
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