quinta-feira, 19 de março de 2020

Pérolas da Netflix - Whisky (Whisky)

De: Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll. Com Andrés Pazos, Mirella Pascual e Jorge Bolani. Comédia dramática, Uruguai, 2004, 94 minutos.

Num primeiro momento Whisky (Whisky) pode parecer um filme meio "torto". Talvez até indefinido, ainda que alguns de seus temas - importância das relações humanas, dar sentido a vida a partir de experiências (ainda que pequenas) satisfatórias -, saltem aos olhos. Como filme uruguaio, a obra dos diretores Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll vai ao encontro da América Latina raiz, lançando um olhar de ternura para os seus extratos mais vulneráveis. Na busca pela felicidade em meio a uma rotina ordinária de trabalho e pouco movimento, valerá qualquer coisa que modifique algo na existência daqueles que assistimos. Qualquer fiapo que se constitua em algum tipo de deslocamento de tempo, de espaço, de quebra de lógica. O que, no caso de Jacobo (Andrés Pazos) e Marta (Mirella Pascual) - que são patrão e empregada - acontecerá a partir de uma visita do irmão de Jacobo, um sujeito de nome Herman (Jorge Bolani).

Jacobo é um senhor introspectivo de 60 anos, que vive sozinho desde a morte de sua mãe. Ele é dono de uma fabriqueta de meias meio decadente - daquelas que funcionam em uma espécie de garagem de bairro. Na sua rotina, tudo SEMPRE igual. Marta, uma supervisora do local - há ainda mais duas funcionárias -, chega, sobe as escadas, coloca o avental, lhe faz o chá, enquanto Jacobo luta com uma persiana velha e emperrada, que lhe impede qualquer entrada de luz exterior, no ambiente. Aliás, a fábrica em si é o retrato da melancolia e da mesmice que ronda a vida daqueles que assistimos - e palmas para o desenho de produção, que torna as paredes amareladas, os espaços macambúzios e desgastados pelo tempo e as teias de aranha, o cenário perfeito para a exemplificação da claustrofobia. Aliás, não é só o desenho de produção que merece aplausos: a edição de som, com o barulho das máquinas em operação somado com o zumbido dos refletores, compõem um panorama externamente caótico, quase opressor, mas que dialoga com a bagunça interior daquelas figuras que apenas existem, em uma perspectiva taciturna.


Bom, como já dito a chegada do irmão modificará um tanto as coisas. Talvez por vergonha ou por algum outro motivo que fica exatamente claro, Jacobo pedirá a Marta que finja ser sua esposa, durante a estada de Herman. Aliás, parece haver algum tipo de ressentimento no ar entre os irmãos - e que aparentemente tem a ver com o fato de que Herman já está há 20 anos sem viajar a Montevidéo (ele atualmente mora no Brasil). Em terras uruguaias, participará da matzeiva, um tipo de cerimônia judaica para a colocação da pedra no túmulo de sua mãe. Mas essa será apenas a desculpa para que ressentimentos aflorem de forma sutil: muito mais bem sucedido que Jacobo, Herman também tem uma fábrica de meias e resolve aproveitar a viagem para convidar o casal "improvisado" para um passeio a praia. Herman é um bom vivant: gosta de bom vinho, de boa gastronomia, passeios. Tem boa conversa, é mais extrovertido. E despertará o interesse de Marta, que verá sua existência transformada pela presença daquele sujeito tão afável..

E é assim que a gente percebe que Whisky também é uma obra certeira na abordagem de sentimentos, especialmente os guardados, os não revelados (e não vividos). E isto se tornará ainda maior, quando constatarmos que Jacobo tem ciúme de Herman não apenas pelo fato de ele ser mais interessante do que o irmão, mas TAMBÉM por causa de Marta. E a construção desse arco dramático não poderia ser mais primorosa - seja na cumplicidade do toque entre as mãos durante uma partida de hóquei sobre a mesa, seja no "carinho" dado pela própria Marta, que transforma a casa decrépita de Jacobo em um espaço minimamente habitável. Enfim, não é obra para todos os paladares, ainda que o tema do amor, das relações e das trocas seja caro a todos nós - e pensar sobre isso em tempos de Corona se torna ainda maior. Mas quem se aventurar pelas curvas dessa pequena joia do cinema sulamericano, certamente concluirá que nem sempre é fácil amar. E que devemos ter resignação para seguir em frente.


Um comentário:

  1. Top esse filme, muito bem feito, cenários, fotografia, interações...vale a pena!

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