terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Cine Baú - A Longa Caminhada (Walkabout)

De: Nicolas Roeg. Com Jenny Agutter, Luc Roeg e David Gulpilil. Drama / Aventura, EUA, 1971, 100 minutos.

"Na Austrália, quando um aborígene completa 16 anos ele é obrigado a vagar pela terra. Durante meses deve viver dela. Dormir sobre ela. Comer de seus frutos e de sua carne. Sobreviver, ainda que para isso tenha que matar outras criaturas. Os aborígenes chamam isso de 'walkabout'. Essa é a história de um 'walkabout'". Foi uma carreira bastante irregular a do britânico Nicolas Roeg, mas é preciso que se diga que ele alcançou um resultado bastante satisfatório com o enigmático, selvagem e absurdamente sensorial A Longa Caminhada (Walkabout). Partindo da ideia contida na frase que abre essa resenha, o diretor conta a história de dois jovens - uma adolescente de 18 anos e seu irmão que tem cerca de oito anos -, que são levados até o meio do deserto australiano pelo pai que enlouqueceu. Lá, eles sofrem uma frustrada tentativa de assassinato do genitor que, em seguida, comete suicídio. Abandonados, no meio do nada, os irmãos precisarão retornar à civilização. E para isso empreendem o walkabout do título original.

Muito menos preocupado em explicar as motivações do pai suicida, Roeg está mais interessado em narrar as desventuras da garota (vivida por Jenny Agutter) e do menino (Luc Roeg, filho do diretor na vida real), que atravessarão dezenas de quilômetros em meio a aridez do deserto, enquanto se empenham em encontrar água, comida e qualquer coisa que, afinal, possa lhes dar sustento e a possibilidade de sucesso na jornada. Encarando o seu destino com comportamento pouco fatalista - o que não deixa de ser curioso -, a dupla atravessa montanhas rochosas e dunas gigantescas, o que garante um sem fim de lindas tomadas que apenas ampliam a sensação de isolamento. Os animais que aparecem pelo caminho - lagartos, cobras e outros que costumam se dar bem no ambiente árido -, surgem como parte de um cenário ameaçador, mas que também dá a dimensão da distância ocupada por qualquer componente "civilizatório".


E será no encontro com um jovem aborígene que está justamente cumprindo o seu walkabout real, que a dupla mergulhará de vez no ambiente primitivo da selva - com seus ritos, hábitos e comportamentos sendo revelados aos poucos e entrando, de certa forma, em choque com os ideais de desenvolvimentismo urbano. Ainda assim, curiosamente, será o aborígene (interpretado por David Gulpilil), que encaminhará a dupla para as bordas daquele cenário inóspito, deixando a sua marca naquilo que pode ser encarado como um curioso road movie a pé, em que a jornada em si é o veículo para a consolidação de uma grande amizade. Explorando de forma magistral o antagonismo óbvio entre a frieza do concreto e o calor da selva, a obra esbanja naturalismo, equilibrando na medida certa um certo erotismo (repare nos closes gerais dos corpos nus ou não) com um outro tanto de exotismo - sensação ampliada pelas imagens de animais putrefatos, que surgem mescladas com sequências oníricas que parecem resultado de algum sonho alucinatório em meio ao nada.

Nesse sentido, o filme também é um excelente exercício de técnica, com um desenho de produção soberbo - as cenas no meio do nada são claustrofobicamente bucólicas -, que é complementado pela ótima trilha sonora, em que canções como Gasoline Alley, de Rod Stewart, acabam por dar ritmo à narrativa. Já as trucagens utilizadas tanto na edição como na fotografia, também contribuem para o sentimento generalizado de exoticidade que rege essa pequena fábula - o que, em alguns momentos, nos faz imaginar como seria um filme do Godard (aqueles bem cheios de invencionices), no meio rural. Cheio de contrastes, o filme ganha ainda mais força no debate geral sobre a monotonia do capitalismo e as ambições do american way of life, acrescentando ainda um componente nostálgico a respeito de uma vida desejada, mas que seria provavelmente impossível de ser vivida - a menos que houvesse uma inadiável quebra de padrões. É uma obra nem sempre fácil, pouco convencional, mas que passa sua mensagem confiando na inteligência do espectador. Prestes a completar 50 anos de seu lançamento, A Longa Caminhada segue como uma experiência cinematográfica viva e cheia de inspiração, que não hesita em questionar o status quo.

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