quarta-feira, 24 de junho de 2020

Grandes Filmes Nacionais - Estômago

De: Marcos Jorge. Com João Miguel, Fabiula Nascimento, Babu Santana, Carlo Briani e Paulo Miklos. Comédia / Drama, Brasil, 2007, 108 minutos.

"A minha arte é a gastronomia, é dessa alquimia que eu transformo o meu mundo". A frase atribuída ao chef de cozinha Maxwell Di Manno tem absolutamente tudo a ver com o filme Estômago, do diretor Marcos Jorge. Afinal, arte e boa comida se misturam nessa obra que prova a capacidade transformadora do domínio da boa cozinha - seus pratos, ingredientes, utensílios. Os mais antigos brincavam sobre terem sido "conquistados pelo estômago" na hora da escolha de seus pares. Você já ouviu essa frase de algum parente, algum conhecido. E ela faz todo o sentido. Cozinhar é uma alquimia. Um tipo de mágica quase divina. Que modifica completamente a existência de Raimundo Nonato (João Miguel), protagonista da obra. Nonato é um sujeito pobre, de origem nordestina, que vai parar no subúrbio de uma grande cidade em busca de trabalho: perambula pela noite, até parar num boteco daqueles que vendem pasteis e coxinhas banhentas. Está com fome, sem lugar pra dormir. De forma truncada oferece serviço em troca de comida. De uma cama.

Com idas e vindas no tempo, o filme nos faz perceber que Nonato está, atualmente, preso. A trucagem narrativa nos levará, mais tarde, a entender o que de fato aconteceu. Na prisão, o rapaz é um sujeito qualquer. Dorme no chão misturado com outros presos, come a gororoba oferecida aos detentos pelo Estado. Mas numa conversa prosaica anuncia que sabe cozinhar. Que com ingredientes simples como alho, cebola e alecrim pode fazer a mágica acontecer. Os demais presos mexem os pauzinhos - especialmente Bujiú (Babu Santana, que recentemente integrou o "elenco" do BBB), o líder da gangue (ou da cela) local. Nonato começa a cozinhar. Ganha o respeito dos demais. Galga posições na hierarquia do presídio, passa a dormir em uma cama, com colchão e tudo. Quanto mais elaborados forem os pratos, mais saborosas forem as misturas, maior ele será. Todo mundo gosta de comer bem, afinal - dos presos de Bangú aos grandes empresários paulistanos.


E, comer bem não tem a ver com gastronomia chique: tem a ver com ingredientes. Um feijão pode ser completamente diferente em mãos diferentes. Ou uma coxinha. Quando chega no bar do seu Zulmiro (Zeca Cenovicz) para trabalhar, Nonato aprende a fazer a iguaria típica de dez entre dez botecos. Mas imprime a sua "personalidade" a ela, por mais imundo e decadente que seja o local. A comida atrai a atenção, a freguesia aumenta. Entre os frequentadores está Giovani (Carlo Briani), dono de um restaurante chique que se admira com a qualidade da coxinha feita por Nonato. O chama pra trabalhar com ele. E é lá que o retirante nordestino adquire, definitivamente, a experiência que lhe eleva toda a moral na prisão. Menos inseguro, ele se aproximará da prostituta Íria (Fabiula Nascimento). Se apaixonará por ela. A desejará perdidamente. Um tipo de desejo carnal, quase instintivo, selvagem. Sexo e comida desvairadamente misturados, combinados. Prazeres. Que nos corrompem. Nos confundem. Corpos e carnes e sangues e vísceras. E fúrias.

Até chegar onde quer chegar o filme é um combo divertido que não deixa de denunciar os contrastes sociais - os diálogos entre Nonato e Giovani são impagáveis -, ampliando a sensação de suspense que culminará em uma espécie de "banquete final". Na prisão, Nonato passa a receber o apelido de Alecrim, em referência ao ingrediente tão utilizado. Sob essa alcunha cozinhará até as formigas da cela - um tipo de "iguaria" típica da Colômbia. O que resultará em sequências inusitadas. Mas, ainda assim, o que está em jogo na obra de Jorge é, de fato, o poder da gastronomia. Foi assim no decorrer das eras, na história - com o domínio do fogo, da agricultura, da capacidade de usar objetos. Foi assim que o homem evoluiu. Se desenvolveu. Aconteceu com Nonato, que explorou da melhor (e da pior) forma o seu aprendizado nesse filme que, não por acaso, é o 74º melhor da história, de acordo com a lista elaborada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).

 

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