terça-feira, 2 de junho de 2020

Cine Baú - Faça a Coisa Certa (Do The Right Thing)

De: Spike Lee. Com Danny Aiello, Spike Lee, Giancarlo Esposito, Bill Nunn, Ruby Dee e John Turturro. Drama, EUA, 1989, 119 minutos.

[ATENÇÃO: ESSA RESENHA POSSUI SPOILERS]

É quase lá no final de Faça a Coisa Certa (Do The Right Thing) que uma briga em uma pizzaria do Brooklyn, em Nova York, motivada por um rádio quebrado, acaba em uma ação completamente desastrada da polícia - pra dizer o mínimo. A consequência da abordagem violenta é a morte de um homem negro por asfixia. Sim, por asfixia. Você já viu essa história. Você vê essa história a toda hora, porque hoje em dia o racismo - que saiu oficialmente do "armário", sendo legitimado pelo voto em aberrações políticas como Bolsonaro e Trump -, é filmado. A gente tem, portanto, praticamente todos os dias um "caso George Floyd" diferente em algum lugar do mundo, sendo registrado, num processo inacreditável de banalização da morte. E o que o diretor Spike Lee fazia, já no final de 1989, com seu cinema tão cáustico quanto colorido, era chamar a atenção para esse tipo de abuso absurdo. Que acontece a toda a hora, em tudo quando é lugar.

O personagem negro que morre pelas mãos da polícia é Radio Raheem (Bill Nunn). Na cena mais dilacerante dessa obra-prima de Lee, Radio entra na pizzaria do ítalo-americano Sal (Danny Aiello) ouvindo hip hop em um daqueles antigos aparelhos portáteis. Grandes, barulhentos. Radio entra no estabelecimento acompanhado por Buggin Out (Giancarlo Esposito, que mais tarde ficaria conhecido como o Gus, de Breaking Bad). Buggin havia passado o filme inteiro em uma cruzada contra Sal e seus filhos Pino (John Turturro) e Vito (Richard Edson) implicando com o empresário para que ele colocasse na parede de seu estabelecimento a foto de alguma figura representativa para a comunidade afro, que era frequentadora assídua do local. Na parede da pizzaria de Sal, figuras como Al Pacino, John Travolta e Sylvester Stallone tinha suas caras à mostra em uma espécie de coleção de imagens. Buggin Out sentia que não se identificava com o local em que consumia suas pizzas. Sal argumentava que no estabelecimento dele, era ele quem decidia sobre a decoração. E a vida seguia.


É dessas pequenas tensões entre os mais variados núcleos - há ainda os latinos, os orientais, um ou outro branquelo perdido, além de um grupo de idosos e de jovens negros -, que se faz o filme de Lee. Todos convivem de forma aparentemente harmoniosa, em meio a uma Nova York escaldantemente palpável, fotografada de forma ao mesmo tempo colorida e saturada. Mas a gente parece saber, conforme a película avança, e a cada saída de Mookie (o próprio Lee) para alguma entrega de pizza pelo bairro, que algo parece prestes a explodir. Há uma tensão latente, que se sobressai em pequenas discussões em que temas como racismo, gentrificação e misoginia são expostos de uma forma aparentemente sem lógica, meio desconexa, quase indireta. mas que no fim das contas forma uma teia social de um coletivo de pessoas que parece sempre no limite. Sensação ampliada conforme os contrastes aumentam e as fronteiras de espaço vão sendo amargamente extrapoladas.

Na sequência em que um ricaço passa com um carrão conversível pelo bairro enquanto os jovens se divertem extraindo água de um hidrante, a preocupação do sujeito é com o bom material, ao passo que para as famílias negras da região a pequena conquista cotidiana é o banho ao ar livre. Quando a polícia chega e enxota o sujeito que despeja um rosário de ofensas racistas, a vida segue. Mas o racismo ficou. O ataque permaneceu. Alguém viu. Alguém se ofendeu. Há um histórico de luta negra por direitos no pós-escravidão. De desejo pela liberdade que, de forma velada, ainda não chegou. E essa animosidade está sempre prestes a explodir. E explode quando Sal se enfurece com Radio Raheem e todo mundo briga de maneira generalizada. Quando a polícia chega, os negros são afastados com violência. Radio é imobilizado. Estrangulado, não consegue respirar. As pessoas tentam avisá-lo de que ele não está conseguindo respirar. Tarde demais: a polícia já assassinou mais um homem. Negro. Pobre. Da periferia. Introspectivo. Na dele. Fã de hip hop. Que teve seu rádio quebrado pelo dono da pizzaria neurótico. E que morreu por isso.



Quando foi lançada, a obra de Lee foi acusada de incitar a insurreição e a violência, por que no filme a comunidade fica tão emputecida com Sal que DETONA a pizzaria toda, com a catarse sendo completa quando Smiley (Roger Guenveur Smith) pendura a foto de Martin Luther King e Malcolm X nas paredes arruinadas do local. Eu, sinceramente, não sei se a violência resolve, mas o caso é que o racismo já deu no saco e a reação dos norte-americanos à mais uma ação totalmente equivocada da polícia é a mostra disso. Era pra já ter dado, mas o que se vê são as "famílias de bem" achando bonito um bando de lunáticos vestido como a Ku Klux Klan. Tomando leite. Usando bandeira da Ucrânia fascista. Matando negros. Eu preferiria muito mais falar sobre como Faça a Coisa Certa influenciaria toda uma geração que viveu a MTV dos anos 90, suas roupas, acessórios, gírias, músicas, estilo, cores e enquadramentos, permanecendo relevante também por isso até hoje. Mas enquanto negros seguem morrendo EXATAMENTE como morreu Radio Raheem em uma obra de ficção, só fica a dor, o luto, a morte. Tristes tempos que esse clássico moderno (e a vida real) não nos fazem esquecer.

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