segunda-feira, 22 de junho de 2020

Livro do Mês - Ruído Branco (Don Delillo)

Em tempos de internet, de pós-verdade e de mudanças climáticas não deixa de ser impressionante o quanto Ruído Branco - obra lançada em 1985 por Don Delillo -, se mantém atual. Trata-se de uma distopia literária que equilibra fluência textual com a sofisticação de seus temas, que podem saltar da paranoia governamental e da participação da mídia na vida em sociedade até chegar ao medo da morte. Aliás, o medo do fim é peça central da narrativa, tanto que Jack e sua esposa Babette costumam fazer uma brincadeira sobre quem deve morrer primeiro entre os dois. Eles moram em uma pequena cidade de nome Blacksmith, que funciona como qualquer pequena cidade norte-americana em que a classe média se comporta de forma exibicionista em meio a padrões sociais pré-estabelecidos e convenções bastante adequadas ao american way of life. Jack e Babette possuem filhos de casamentos anteriores, se alimentam, trabalham, vão ao supermercado, subsistem. Buscam e levam as crianças na escola. "Enfrentam" o dia a dia. Acordam ansiosos. Em crise. No meio da madrugada - como no caso de Jack, que já passou dos 50 anos. E que passa a encarar a finitude como uma possibilidade real.

A situação se torna realmente tensa quando nos arredores da cidade ocorre um vazamento químico que forma uma nuvem tóxica, obrigando todas as famílias da região a deixarem suas casas, migrando para uma espécie de acampamento improvisado. Ainda não é possível determinar o risco real do acidente radioativo: recomenda-se manter distância da poeira. Jack, Babette e as crianças vão para o local indicado. Ouvem no rádio as informações desencontradas, que geram mais incertezas. Aliás, as notícias mudam o tempo todo, inclusive do ponto de vista da nomenclatura com a "pluma de fumaça" passando para "nuvem negra" sem muita explicação. Niodene D é a substância. Qual o mal que faz? Tonturas? Vômitos? Confusão mental? Mal estar? Está presente em outros produtos? Qual o tempo que podemos ficar em contato com a radiação sem sermos prejudicados? Muitas dúvidas, poucas respostas. Jack para o carro pra abastecer. Acaba por ter contato com a nuvem. Por dois minutos. Estará fadado a morte? Terá se intoxicado? Setores do governo coletam seus dados, adicionam as informações ao sistema. É cedo para saber. Fica somente o medo de morrer.



Diferentemente de outras distopias da literatura e até do cinema catástrofe, aqui não veremos uma população empenhada em sobreviver a um evento em si, mas sim as consequências dele. É mais ou menos aquilo que acontece no filme sueco Força Maior, onde escapar de uma avalanche não é exatamente o problema em si. O problema está naquilo que vem depois. Em quem fica e sobrevive. E em COMO sobrevive. Em Ruído Branco a família volta para casa no dia seguinte ao acidente que gera a nuvem tóxica. Mas há algo no ar. Algum estranhamento. Dúvidas sobre o futuro, sobre a existência. Como efeito colateral da radioatividade, as pessoas passam a sentir deja vús. O futuro já visto se "colando" com a realidade? E quando Jack descobre que Babette esconde em um compartimento da casa em que moram, um misterioso medicamento, tudo se torna pior. Babette sempre foi uma mulher leve, divertida, expansiva. Anda sisuda, introspectiva, reflexiva. As coisas têm mudado. Os tempos são outros. O futuro é incerto, perturbador.

Delillo constrói a obra inserindo nela uma série de questões que colocam realidade e imaginação divididos por uma linha muito tênue. Na Universidade, Jack dá aula sobre hitlerismo. Um de seus passatempos preferidos é ir ao supermercado, de preferência na companhia do excêntrico amigo Murray - figura cheia de boas tiradas, que integra o departamento de Cultura, como professor visitante. Há outras peças nesses quebra-cabeças, como um professor de alemão, um homem cego, uma pesquisadora de bioquímica. Todos trafegando nesse universo em que conversas prosaicas na cozinha sobre o jantar a ser feito, se misturam com o barulho da TV que insiste em fazer propaganda daquele novo e revolucionário produto. Viver, consumir, morrer. Um tratado filosófico e existencialista sobre nossos medos, anseios e inseguranças e sobre como podemos tentar enfrentá-los. Ao misturar ficção científica, com distopia futurista, Delillo fala muito mais dos tempos atuais que vivemos, do que qualquer outra coisa. Somos figuras complexas, navegando em um mundo de distrações: inseguras, impotentes, tentando superar frustrações. E a magia do livro se faz na simplicidade de misturar comédia de situação cheia de comentários sociais familiares (e populares), com a imprevisibilidade daquilo que mais parece retirado de um bom episódio de Black Mirror. O resultado é grande, como não poderia deixar de ser.

Nenhum comentário:

Postar um comentário