sexta-feira, 19 de junho de 2020

Picanha em Série - The Leftovers (1-3 Temporadas)

De: Damon Lindeloff e Tom Perrotta. Com Justin Theroux, Carrie Coon, Ann Dowd, Liv Tyler, Amy Brenneman, Scott Glenn e Christopher Eccleston. Drama, EUA, 2015 a 2017, 60 minutos (média de tempo do episódio).

The Leftovers é, seguramente, uma das melhores séries que já assisti - se colocando ao lado de Breaking Bad, Bates Motel, This Is Us e outras preferidas. Só que teve um problema: assistir a ela na quarentena, em meio à pandemia, não me fez muito bem. Explico: ainda que sejam apenas três temporadas distribuídas em 28 episódios, há uma forte carga dramática e uma densidade narrativa poucas vezes vista, numa trama que discute fanatismo religioso, conceitos de família, percepção da morte como uma possibilidade REAL e como os traumas mexem conosco. Tudo começa com um evento meio "enigmático", que envolve o desaparecimento repentino de 2% da população mundial - cerca de 140 milhões de pessoas ao redor do mundo, no dia 14 de outubro de 2011. Arrebatamento bíblico que levou os verdadeiros cristãos para perto de Deus no fim dos tempos? Evento sobrenatural inexplicável? Invasão alienígena? Não há respostas. E não haverá respostas, bem sinceramente. Mas muitas pessoas ficaram. E tentarão restabelecer alguma "normalidade" dali para frente.

Entre os que ficaram está o policial Kevin Garvey (Justin Theroux) e a funcionária governamental Nora Durst (Carrie Coon). Os dois, de alguma forma, tiveram perdas por ocasião da "partida repentina". A situação mais dramática é a de Nora: naquele dia 14, em meio a um dia qualquer na cozinha, em que as crianças faziam baderna, enquanto o marido se mantinha alheio, viu todos sumirem de uma vez. Toda a família. Os dois filhos e o marido. Já Kevin não viu nenhum desaparecimento físico acontecer, mas perde a sua esposa Laurie (Amy Brenneman) para uma espécie de culto misterioso, que se autodenomina de Remanescentes Culpados - coletivo em que todos utilizam roupas brancas, não se manifestam com palavras e passam os dias tentanto cooptar novos membros, enquanto fumam carteiras e mais carteiras de cigarros. Pra piorar, um de seus filhos resolve seguir uma espécie de guru espiritual, enquanto sua filha também parece meio perdida a partir do ocorrido.


E é a partir da história de Kevin que a gente percebe que The Leftovers é muito mais sobre quem ficou, do que sobre quem foi. Sem fornecer muitas explicações para o fatídico evento, a narrativa centra suas forças na permanente tentativa de simplesmente subsistir, prosseguir, em meio a questionamentos de crenças, dúvidas sobre o futuro e incertezas meio generalizadas. Irmão de Nora, Matt (o ótimo Christopher Eccleston) é um reverendo que não acredita na teoria do "arrebatamento", afinal, muitos dos desaparecidos eram bandidos, pecadores, prostitutas, chantagistas ou, simpelsmente, maus cristãos. A primeira temporada de alguma forma apresenta estes conflitos em que Igreja se coloca em choque com a sociedade civil, enquanto novos grupos religiosos se esforçam para jogar alguma luz sobre os eventos. Mas, é preciso que se diga: a força da série não está na grandiosidade de acontecimentos supostamente bíblicos e sim no que ocorre na intimidade de cada um daqueles personagens, que trafegam em suas existências num misto de incerteza quanto ao futuro e de incapacidade de seguir adiante.

A segunda temporada apresenta um interessantíssimo arco narrativo, ao migrar a história para uma pequena cidade de pouco mais de 9 mil habitantes do Texas - onde mais? -, em que ninguém foi arrebatado. Chamado de Miracle, o local passa a ser frequentado por peregrinos, fanáticos religiosos que parecem aguardar algum tipo de intervenção divina - especialmente em épocas de aniversário do incidente. Há novos personagens, novos mistérios, novos sumiços, que serão, em partes, amarrados na terceira temporada - isso por que a série não apresenta respostas definitivas para nada. E talvez seja isso que a torne tão fascinante porque tudo parece tão passível de alguma explicação quanto duvidoso. Há um misticismo amplificado pela trilha sonora (experimente ficar alheio a A Blessing de Max Richter), num sem fim elegíaco de silêncios barulhentos, de diálogos ambíguos, de solenidades afetuosas em cada frame. Volto a dizer que a gente sairá sem muitas respostas: mas compreenderá que estamos falando de uma série que apresenta o conceito de "perda" como nunca antes visto. E sobre como devemos lidar com ela. Talvez a melhor série da última décadaThe Leftovers foi resumida pelo crítico Roger Ebert como um espetáculo "capaz de transformar o espectador em marionete, suscitando dúvidas, inspirando teorias, convertendo céticos em crentes e vice-versa". Vocês vão amar. Não tenho dúvidas.

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