segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Cinema - Agnus Dei (Les Innocentes)

São tantos os temas considerados tabu em Agnus Dei (Les Innocentes) - aborto, estupro, ciência em contraponto a religião - que a chance de o filme de Anne Fontaine (de Coco Antes de Chanel) soar excessivamente panfletário poderia ser a condição para que a obra naufragasse. Mas, pra sorte, não é o que ocorre. Especialmente pelo fato de a película respeitar as mais variadas percepções (ou mesmo ideologias e crenças) sobre os temas em questão - algo que valoriza o debate sem tomar partido e, principalmente, sem enfraquecer a narrativa.

Baseada em fatos reais, a trama se passa durante o fim da Segunda Guerra Mundial, na Polônia. No local, a enfermeira Mathilde (Lou de Laâge) trabalha na Cruz Vermelha, com o objetivo de atender os feridos franceses envolvidos no conflito - que integravam, ao lado de União Soviética, Estados Unidos e Reino Unido, a campanha que visava a derrubar o nazismo e o fascismo de Hitler e Mussolini, que avançava pela Europa. Em um dia de trabalho, Mathilde é procurada por uma freira de um convento vizinho para atender a uma jovem que está tendo complicações no parto. A jovem, para surpresa da enfermeira é uma freira. Assim como ela, outras tantas freiras e madres estão grávidas, pelo fato de terem sido estupradas por soldados invasores.



Anda que Mathilde esteja orientada a atender apenas pacientes franceses, o contexto tenebroso encontrado no convento - com freiras e madres envergonhadas por terem tido o seu corpo violado, bem como o voto de castidade quebrado, a partir de um ato cruel - fará com que a enfermeira passe a atender, secretamente, as moradoras do local. As diferenças culturais e ideológicas entre Mathilde - uma jovem cética da classe trabalhadora e de espírito comunista - e as religiosas tementes à Deus e estritamente respeitosas aos dogmas da Igreja Católica, resultará em um contraponto interessante, conforme a aproximação entre todos aumenta. E não é por acaso que, em uma das sequências mais tocantes, Mathilde ajuda a salvar o grupo de um novo ataque de soldados, utilizando seus conhecimentos sobre ciência e medicina, como forma de assustar e afastar os invasores. Recebendo, no instante seguinte, todo o carinho das irmãs pelo gesto.

Nesse sentido, o absurdo da guerra também é retratado pelo fato de serem justamente os soldados russos - que deveriam estar na Polônia para ajudar o povo de lá - os responsáveis pelos ataques. O que também pode servir para demonstrar a lógica de que agressões desse tipo nada tem a ver com a roupa usada pelas mulheres, por como elas se comportam ou pelo permanente (e absurdo) processo de culpabilização da vítima, vivido nos dias de hoje. E o fato de freiras e madres - por mais que acreditem estar sendo guiadas pela vontade de Deus - estarem dispostas a rejeitar o "fruto" de um relacionamento pautado apenas pela agressão e pelo abuso de poder, como mostra o filme, é mais um indicativo da dificuldade em se conciliar a fé com a realidade brutal. Ainda que, em contrapartida, não devamos ignorar o fato de muitas das mulheres estarem dispostas a assumir o papel de mãe, mesmo nessas circunstâncias - caso seja esse o desejo d'Ele. (algo impensável, por exemplo, para os que defendem o aborto nesses casos)


Abusando dos silêncios - e das cenas eventualmente contemplativas - e da fotografia acinzentada, que acentua o clima gélido da película - sensação ampliada pela presença permanente da neve - a obra ainda conta com excelentes interpretações de todo o elenco, com destaque para Agata Kulesza, como a madre superiora reticente e compreensiva e Ágata Buzek, que traz na irmã Maria um misto de vulnerabilidade e ímpeto. Ainda que, aqui e ali, alguns temas pudessem ter sido melhor explorados (entre eles os traumas das mulheres estupradas, que passam meio "batido"), há que se salientar o arrojo da realizadora, por se desafiar a abordar tantos assuntos espinhosos (ou mesmo polêmicos) em uma mesma obra. Em uma época em que discursos de ódio, ou mesmo comportamentos misóginos e machistas ainda ocupam páginas e páginas das redes sociais, Agnus Dei joga alguma luz a esse debate, mostrando que, independentemente da época, da crença religiosa, ou dos princípios ideológicos há que se combater, antes de mais nada, a violência contra a mulher.

Nota: 8,2

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