De: Zoë Kravitz. Com Naomi Ackie, Channing Tatum, Alia Shawkat, Adria Arjona e Geena Davis. Comédia / Suspense, EUA / México, 2024, 102 minutos.
[ATENÇÃO ESSE TEXTO TEM SPOILERS]
Enquanto assistia ao ótimo Pisque Duas Vezes (Blink Twice) não conseguia parar de pensar naquela anedota (nem tão anedota assim) sobre o sujeito que conversa com uma feminista e, na tentativa de demovê-la de suas ideias, ele pergunta: "mas se todos os homens desaparecerem da Terra, quem defenderá as mulheres se elas estiverem em perigo?". Ao que ela responde: "defender do quê?". Sim, a gente sabe que não é todo o homem que é um abusador em potencial, mas, vá lá, é sempre um homem. E o que o filme de estreia de Zoë Kravitz parece tentar fazer, é lembrar meio que o óbvio: mulheres, tenham cuidado redobrado com desconhecidos, com ofertas fáceis, com supostas paixões avassaladoras que ocorrem no mundo dos sonhos. Em tempos de avanço da extrema direita, das mesas redondas com redpills e incels revoltados e de alterações nos papeis de gênero na sociedade, a misoginia nunca esteve tão em alta. E ela vende. Sendo preciso estar atenta.
Evidentemente que uma obra como essa deverá deixar acabrunhada aquela parcela da população que convive com uma masculinidade frágil crônica - e que, em muitos casos, envolve os machões raiz incorrigíveis. Afinal de contas, pra apreciar um grupo de mulheres reagindo a um amontoado de burgueses estupradores - com direito a muito sangue, agressões (inclusive com objetos fálicos) e mortes -, é preciso estabelecer como parâmetro o absurdo da violência a que elas estavam sendo submetidas antes. Ao cabo, essa é uma produção sobre sororidade. Sobre a importância delas se unirem para disputar espaços, manter conquistas, lutar por equanimidade. Lutar no sentido de guerra mesmo. Claro que a narrativa toda se desenrola em uma ilha isolada, mas dá pra encarar esse microcosmo, no limite da alegoria, como uma metáfora para a sociedade. Afinal, trinta e cinco mulheres foram agredidas por minuto, somente no Brasil, em 2022, de acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E nem foi preciso ir pra uma ilha pra isso.
Para além da bandeira escancaradamente levantada, a obra de Kravitz utiliza seus símbolos, cores e até figurinos, de forma muito criativa - o que mantém o interesse constante, mesmo com o espectador já imaginando o horror que se desencadeará (o trailer entrega demais). Em tempos em que o termo em inglês red flag virou um sinônimo para a denúncia de comportamentos abusivos, agressivos e tóxicos, Pisque Duas Vezes parece ser todo ele uma espécie de red flag ambulante, já que as cores vermelhas (e que, nesse caso particular, reforçam o indicativo de perigo) saltam os olhos, aparecendo em absolutamente todas as partes da ilha - na fachada da casa, nos móveis, nas sacolas com presentes, nas flores e em outros adereços. O que contrasta, aliás, com as roupas branquíssimas e virginais das jovens que chegam à ilha, convidadas pelo magnata da área de tecnologia Slater King (Channing Tatum) - estando entre elas as protagonistas Frida (Naomi Ackie) e Jess (Alia Shawkat). Por outro lado, a ambientação onírica, de sonho, leva ao limite a instabilidade gerada pelo consumo de drogas, de álcool e outros, que faz com que a realidade fique meio difusa, contribuindo para o senso de estranhamento.
Frida - e, vamos combinar que esse nome não deve ser coincidência - é uma artista de unhas (aquelas manicures dedicadas aos desenhos mais elaborados), que também é uma garçonete de meio período. Ainda no começo do filme, ela justamente está trabalhando em uma festa dada por King, que está em uma espécie de campanha para limpar a sua imagem perante a opinião pública - o que envolve a aquisição da tal ilha privada para onde ela irá, após o convite do CEO. Outras mulheres integram esse grupo, sendo elas a estrela de reality show Sarah (Adria Arjona), a desenvolvedora de aplicativos Camilla (Liz Caribel) e a advogada Heather (Trew Mullen) - além de Jess. Só que ao chegarem lá e terem seus telefone confiscados, Frida ficará desconfiada. Especialmente após eventos estranhos iniciarem - por mais paradoxalmente paparicadas que as mulheres sejam por lá, com presentes, perfumes, roupas caras, drinques à vontade e outros. E por mais sério que seja o assunto central, a opção por tratá-lo com leveza, convertendo a produção em um slasher excentricamente divertido que mescla Corra! (2017) com Bela Vingança (2020), certamente torna a experiência mais palatável para um público mais amplo. E a aderência, nesses casos, também fortalece o papel político da obra.
Nota: 8,0
Nenhum comentário:
Postar um comentário