De: Woody Allen. Com Lou de Laâge, Niels Schneider, Melvil Poupaud e Valérie Lemercier. Comédia / Policial, EUA / França, 2023, 96 minutos.
Toda vez que o Woody Allen lança um novo filme, eu passo mais ou menos pelo mesmo sentimento: vou a sala de cinema inicialmente desconfiado, para concluir a sessão satisfatoriamente surpreendido. Sim, a gente já sabe exatamente o que vai acontecer nas obras do diretor - que costuma unir personagens carismáticos (e neuróticos, em alguma medida), que precisam lidar com coincidências da vida e paixões frustradas, enquanto ruminam divagações filosóficas, poéticas e cheias de referências. Tudo embalado por uma trilha sonora simples mas sofisticada (em muitos casos são standards de jazz) e tendo como cenário alguma cidade cosmopolita, bela e contemporânea. É assim, salvo raras exceções, desde sempre. E não seria diferente agora, que o realizador se aproxima dos 90 anos de idade. Seguindo em ótima forma, como atesta o recém chegado Golpe de Sorte em Paris (Coup de Chance), que está em cartaz nas salas do País.
Assim como nos recentes - e ótimos - Um Dia de Chuva em Nova York (2018) e O Festival do Amor (2020), aqui a trama é centrada nas incertezas e complicações do amor. E de como eventos aleatórios podem representar uma mudança de rota - daquelas que nos faz repensar escolhas ou decisões tomadas anteriormente. O cenário é a França e é pelas ruas de Paris que o escritor Alain (Niels Schneider) caminha descompromissadamente, até esbarrar acidentalmente em Fanny (Lou de Laâge), uma funcionária de uma casa de leilões. Os dois, antigos conhecidos da época da escola, não se viam há muitos anos. O que não impede o encantamento - que é maior da parte de Alain, que não hesitará em reafirmar a antiga paixonite juvenil que tinha por Fanny, a "jovem nerd de blusa de gola alta". Conversa vai, conversa vem, eles combinarão um café. Ainda que ela seja casada com um certo Jean (Melvil Poupaud).
Jean, aliás, é daqueles que gosta de paparicar a esposa com presentes caros - joias, de preferência. Praticamente exigindo que ela use os adereços como forma de lhe agradar. "Não gosto de me sentir uma esposa trofeu", lembra ela em certa altura, antes de irem para uma luxuosa festa. Aliás, esse ambiente de pompa, de elegância - com pessoas ricas, meio esnobes e totalmente ocupadas com a aparência alheia - é aquele que Jean, como um homem de negócios que tem operações no mercado financeiro, frequenta. Para Fanny, tudo pode ser apenas tedioso nesse universo - e dá pra entender o fastio da moça, que é sim colocada em uma espécie de pedestal. Mas ao mesmo tempo tem de lidar com as pequenas crises de ciúme do marido, um adulto infantilizado, que gosta de brincar de ferrorama. E, nesse cenário, é óbvio que os encontros às escondidas com Alain, com quem ela se sente muito à vontade, vão despertar suspeitas. Que poderão gerar consequências trágicas.
[SPOILERS A PARTIR DAQUI] Hábil na construção da narrativa, Allen vai deixando pequenas pistas que nos farão perceber o comportamento problemático de Jean - um caçador de cervos ocasional, que parece ter ligação com o suspeito desaparecimento de seu sócio, em episódio ocorrido anos atrás. "Dizem que ele despencou na selva, terá sido suicídio?", sussurra alguém em um dos jantares. Deixando de lado os vinhos importados e a volúpia das casas de campo, Fanny parece reencontrar em Alain a vida simples que há décadas deixou para trás. Ambos já casaram e se separaram anteriormente e hoje sentem prazer ao compartilhar um vinho de sagu debaixo da escadaria do apartamento modesto do escritor, que ele alugou pra concluir um novo livro. "A vida é uma grande piada sinistra", afirma Jean diante da esposa consternada, que tem de moldar o seu comportamento após o sumiço do amante, como forma de não levantar suspeitas. Ao cabo essa é uma experiência engenhosa e imprevisível, que mescla referências à George Simenon, Mallarmé e O Grande Gatsby de forma inteligente e nem tão verborrágica, como de praxe na filmografia de Allen. Vale conferir.
Nota: 7,5
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