segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Picanha.doc - Moonage Daydream

De: Brett Morgen. Com David Bowie, Brian Eno e Iman. Documentário, Alemenha / EUA, 2022, 135 minutos.

É preciso ser justo com Brett Morgen: não é tarefa fácil condensar as diversas facetas de um astro da música tão complexo e tão cheio de camadas como David Bowie, em um documentário de pouco mais de duas horas. É provável que o músico - morto em 2016 apenas dois dias depois de lançar seu último álbum, Blackstar - mereça muito mais do que um filme, por tudo o que ele representa. Talvez uma série em dez episódios, com histórias a respeito do processo criativo, curiosidades de bastidores e até eventuais polêmicas. Só que Moonage Daydream, que finalmente foi disponibilizado na Amazon Prime, parece quase uma instalação televisiva, que presta homenagem ao ícone. E, sinceramente, isso não chega a ser um problema, já que essa se torna muito mais uma experiência sensorial, psicodélica e poética - reforçada pelas imagens evocativas lindamente editadas, que se mesclam as canções envolventes de Bowie - do que uma história documental.

Novamente, o negócio aqui é o sentimento. É perceber como a figura andrógina, iconoclasta e que confrontava o conservadorismo galopante que marcaria certos períodos de sua Inglaterra natal, foi simbólica para toda uma geração. Um homem que usava maquiagem e salto alto? Sem problemas. Um sujeito que se passava por um alterego inspirado em um alienígena vindo do espaço? Tudo certo. Ser bissexual quando este e outros temas tabus sequer eram discutidos? De boas. Ateísmo em tempos de efervescência religiosa? Por quê não. Todos esses elementos que formariam a personalidade de Bowie, convertendo-o em uma figura tão mítica e misteriosa quanto sexy e calorosa - como se de fato fosse alguém vindo de outra dimensão, de uma realidade paralela -, transformam a obra em uma ode biográfica que celebra o apelo estético, a moda, as influências e até a música desse mod que marcaria o glam rock. A gente sabe que o The Killers, o Arcade Fire, o Placebo e mais uma centena de outros artistas não existiriam se não fosse a influência de Bowie. Em todos os aspectos. 


 

Abrindo com uma apresentação em que o cantor interpreta a provocativa Hallo Spaceboys (Eu quero ser livre / Você não quer ser livre? / Você gosta de meninos ou meninas? / É confuso hoje em dia), a obra já estabelece o padrão que se encontrará na produção, que mistura imagens de arquivos, com pequenos trechos de entrevistas e curiosidades, com a narração em off feita muitas vezes pelo próprio Bowie. Tudo envolto em uma ambientação sofisticada de glitter, em uma névoa de filme distópico, com as músicas servindo como uma espécie de material de apoio que ancora aquilo que acompanhamos. Por exemplo, quando o artista fala de sua própria estranheza - ou de como a mídia e o público o percebiam -, trechos de Alladin Sane explodem (e eu confesso que só percebi a ambiguidade da frase "a lad insane" ao ver o documentário. Tudo como forma de reforçar a excentricidade e a loucura que eram parte intrínseca de sua personalidade.

Trafegando pelas várias fases da carreira, o documentário pode também ser uma boa porta de entrada para quem não está muito familiarizado com o músico, já que ele passa por cada etapa - e por cada persona -, de forma a fornecer apenas uma pincelada. A gostinho que fica é o de querer mais - especialmente no terço final, que praticamente ignora as últimas décadas de sua produção - e os momentos finais, de enfrentamento ao câncer (o que talvez seja proposital, na intenção de não apagar essa aura mítica). No mais, está tudo lá: as mudanças de cabelo, de figurino, de maquiagem. De gênero musical - ainda que o glam rock, o art pop e até a new wave, sempre tenham sido a matéria-prima. A ascensão e a leve queda - antes do retorno triunfal e popíssimo no começo dos anos 80 (com o ótimo Let's Dance). As jornadas pela Alemanha e pelo Japão e as consequentes influências. As quebras de tabus - sexuais, religiosos, políticos. A capacidade de trafegar por tudo e de falar sobre tudo - de budismo a Nietzsche, de artes plásticas à musicais da Broadway. A satisfação de se estar vivo. Em mundo sombrio e alegre em igual medida. Transitório. Impermanente. Como uma mosca no leite que absorve tudo. Assim foi Bowie. E o caso é que talvez nunca tenha havido na música, alguém como ele.


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