De: Albert Serra. Com Benoit Magimel, Pahoa Mahagafanau, Cécile Guilbert e Marc Susisi. Drama / Suspense, França / Espanha, 2022, 165 minutos.
"A política é como uma boate. É uma festa com o diabo. Estão todos lá, juntos, com fachos de luz na cara, perdendo a direção. Não há dia e nem noite. As pessoas estão no escuro, tão completamente alheias a realidade que sequer se olham mais. Como uma matilha de cães. Dilacerando uns aos outros. Eles se 'mijam' o tempo todo pensando nas explosões nucleares. Mas não veem os verdadeiros perigos. Que se propagam como ondas atômicas em seus mundinhos." O longo discurso proferido por De Roller (Benoit Magimel), protagonista de Pacifiction, ajuda a explicar o que está por baixo da densa narrativa da elogiada obra de Albert Serra. Em linhas gerais tudo parece muito simples nessa história de um representante do Estado trafegando pelos mais variados ambientes, articulando com todos os tipos de pessoas. Mas é difícil não pensar naquele microcosmo como uma espécie de alegoria para o todo. Para as questões macro que nos afligem nestes tempos.
Sim, o medo da bomba atômica - e de algo meio externo à nossa existência - sempre pareceu onipresente. Ainda mais para a geração anterior, que cresceu em meio aos temores da Guerra Fria e dessas disputas de líderes lunáticos, querendo provar qual deles têm a maior pica (mesmo que esse falo seja metafórico, já que, muito provavelmente, na vida real o membro deve ser diminuto). Mas em tempos de pandemia, de alienação religiosa, de avanço da extrema direita, das crises envolvendo imigrantes, de preconceitos, de meio ambiente em colapso, de xenofobia, de crimes escondidos e nunca resolvidos, talvez os problemas estejam mais próximos do que sugerem a presença de militares (ou de um submarino). Não que, em si, eles não sejam problemas. Também são. Mas há a rotina e seus acontecimentos. E muitas vezes é com ela que lidamos. Ida ao mercado, trabalho, filhos na escolas. As complexidades e dificuldades cotidianas. O problema atômico? Talvez seja uma preocupação distante. Talvez.
A trama de Serra é pesada, e pouco convidativa. Daquelas que não tem pressa e que se demora em divagações, silêncios e repetições, como forma de reafirmar suas ideias. Pode ser apenas aborrecimento para alguns fãs de cinema - e tá tudo bem, porque tem vezes que aborrece mesmo. Chateia. Cansa. E talvez leve umas boas duas horas até que, diante do discurso de De Roller, a gente perceba com mais clareza sobre o que se trata tudo aquilo. Como uma figura onipresente, o sujeito vai para lá e para cá, discutindo os mais diversos temas - políticos, sociais, culturais, religiosos - com os nativos do pequeno Taiti, na Polinésia Francesa, e os forasteiros. Um novo cassino que funcionará como um espaço de diversão. A igreja que talvez seja fechada. Um candidato a prefeito de índole meio duvidosa. As disputas de surfe escapistas entre ondas enormes. Uma escritora que está para lançar um livro. Um cliente do hotel que está insatisfeito por ter perdido seu passaporte. Tudo parece acontecer ao mesmo tempo nesse espaço idílico, que está sob a ameaça nunca muito clara do retorno dos testes nucleares.
De forma paciente, Serra nos conduz de lá para cá em meio a conversas, observações, contêineres, músicas havaianas, artes regionais e instantes aleatórios. Enquanto a vida ocorre na ilha paradisíaca, com suas belezas naturais ostensivas - da natureza verde ao mar azulíssimo -, o final de tarde alaranjado, enevoado, parece uma metáfora para um mundo que clama, em seus dilemas ambientais e violências extremas. A política da boa vizinhança reina, mas há uma dureza que emerge por baixo dos panos, em debates sobre tributação e burocracias - ou mesmo a cada palavra supostamente tranquila, ou aceno mais sutil. Em certa altura, alguém placidamente comenta que "o genocídio dos índios criou as grandes civilizações". Na boate ninguém está pensando na destruição ou se que alguém será capaz de algo, em um espaço tão maravilhosamente belo. Mas será mesmo? Num mundo em que o capital manda, não parece haver limites para o homem. Se for preciso despejar uma bomba atômica só pra teste, em um lindo local isolado do canto do planeta, por quê não, né? Se for pra ganhar a terceira guerra, quem sabe. Ou será que estamos paranoicos? O filme de Serra não nos responde nada disso. Mas nos deixa pensativos por algumas boas horas (ou dias) depois que os créditos sobem.
Nota: 8,0
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