quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Cine Baú - Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (Bring Me the Head of Alfredo Garcia)

De: Sam Packinpah. Com Warren Oates, Isela Vega e Emilio Fernández. Drama / Ação, México / EUA, 1974, 112 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Em uma das sequências mais desalentadoras de Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (Bring Me the Head of Alfredo Garcia), o protagonista Bennie (Warren Oates, num modo meio Seu Madruga das ideias) está prestes a concluir sua missão. Depois de espalhar uma trilha de sangue, desencadear uma sequência de assassinatos, ver sua amada ser estuprada e morta e, ainda conviver, nos instantes finais, com uma cabeça de um morto embrulhada numa sacola de supermercado e envolta por uma nuvem de moscas, o sujeito finalmente chega à grande propriedade de El Jefe (Emilio Fernández) - uma espécie de chefão mexicano com cara de poucos amigos. A cena que poderia ser jubilosa, uma vez que Bennie moveu mundos e fundos em busca de seu ambicioso objetivo, guarda uma dolorosa e pesada lição de moral: de que adianta uma maleta com um milhão de dólares se a sensação é de vazio? "Não tenho nada o que celebrar", comentaria Bennie, diante do dinheiro entregue por El Jefe.

Conhecido como Poeta da Violência - por seu estilo sem concessões, especialmente na hora de retratar homens rudes, misóginos e com um código moral questionável -, Sam Packinpah era um verdadeiro mestre na hora de apresentar pessoas comuns mergulhando em uma espiral de decadência. Foi assim no clássico Meu Ódio Será Tua Herança (1969), em que a mitologia dos filmes de cauboi é encapsulada em uma fábula tão violenta e sanguinolenta, quanto lírica e contemplativa. Em Tragam-me a Cabeça... o expediente se repete, já que quando Bennie é apresentado ao público no começo do filme, ele é apenas um pianista levemente debochado, que toca Guantanamera e outros clássicos do cancioneiro local, em um bordel da Cidade do México. Ao menos até o instante em que os homens enviados por El Jefe chegam ao local perguntando por Alfredo Garcia, que deve ser capturado vivo ou morto. O importante é a cabeça -  que vale a bagatela de US$ 10 mil. O que faz com que Bennie saia dessa simplicidade e comece a mexer os pauzinhos.




Um de seus primeiros contatos será com a prostituta Elita (Isela Vega) que não apenas conhece Alfredo, como teve um caso com ele pouco antes de sua morte - em um trágico acidente, após bater seu carro em um rochedo. O fato de o homem já estar morto talvez facilite a missão? Talvez. É nesse momento que Bennie e Elita - que também já viveram (e seguem vivendo) uma tórrida paixão - embarcam em uma espécie de road movie improvisado pelos cenários áridos do País da América Central, tendo no horizonte o sonho de mudar de vida. Mas é claro que eles não estão sozinhos - já que a notícia da recompensa se espalha -, o que fará com que eles confrontem não apenas um grupo de capangas que também deseja se apossar da relíquia, mas também uma dupla de motoqueiros, mais interessados em abusar de Elita do que qualquer outra coisa. Como de praxe na filmografia de Peckinpah, todos os homens são retratados como selvagens tardios, um tanto embrutecidos, excessivamente machistas, que não hesitarão em rasgar roupas de mulheres, esbofeteá-las ou humilhá-las de todas as formas. Algo que sempre foi problemático para o público e para a crítica - e não é à toa que o filme foi muito mal recebido na época do seu lançamento (para somente depois ter status de cult).

E vamos combinar que esse status de cult pode também ter a ver com o niilismo da coisa toda - reforçado pelo fato de não haver herois nessa narrativa (algo muito diferente do maniqueísmo que reinava nos faroestes do meio do século passado). Peckinpah não parece interessado em redimir ninguém, por mais poéticos que possam ser os instantes envolvendo a viagem de Bennie e Elita, com bonitas paisagens, violão sendo tocado e promessas de um futuro. "O mais importante é estarmos juntos, casarmos em uma Igreja" comenta uma Elita meio resignada, em certa altura, basicamente suplicando para que eles façam meia volta e abram mão da ideia estapafúrdia de obter uma cabeça de um homem morto, para que ganhem algum dinheiro. Não para Bennie. Para ele, a cabeça é a alegoria para a boa sorte - e não pode haver nada mais metafórico do que um homem que tenta "matar" um morto que, ao cabo, já está sepultado. É parte da lição: morrer por dentro, pelas entranhas, é o que esse protagonista desprezível não imaginava. No fim das contas ele não se difere tanto assim do próprio El Jefe, que espanca a própria filha, como forma de puni-la pela gravidez. A cena inicial, na lagoa, com patos, pôr do sol e um clima bucólico, logo dará lugar a uma espécie de antessala da violência em um ocaso do faroeste - em que homens ambiciosos se matam primeiro, para perguntar depois. É poesia. Mas também danação.

 

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