quinta-feira, 7 de julho de 2022

Cinema - O Acontecimento (L’évènement)

De: Audrey Diwan. Com Anamaria Vartolomei, Anna Mouglalis, Pio Marmai e Sandrine Bonnaire. Drama, França, 2021, 100 minutos.

Se nos dias atuais, quando o assunto é a descriminalização do aborto, o pânico moral e o conservadorismo freestyle já costumam nivelar o debate por baixo - como no caso do recente episódio em que o Brasil "parou" pra discutir se era certo ou não uma menina de apenas 11 anos interromper uma gravidez indesejada - imagina há 60 anos. Ou mais. Na França, a legalização do aborto entraria em vigor em 1975. Antes disso, tal qual os países mais atrasados - como no caso do nosso, que insiste em se comportar como uma espécie de Idade Média tropical -, cessar uma gestação de forma voluntária poderia ser considerado crime. Aliás, a proibição era tanta, que algumas mulheres foram condenadas à pena de morte por esse simples desejo de decidir sobre o próprio corpo. Isso sem falar no sem fim de complicações de saúde provocadas por abortos clandestinos - uma verdadeira calamidade sanitária que poderia gerar traumas irreversíveis (ou mesmo a morte).

Em cartaz nos cinemas, o impactante O Acontecimento (L’évènement) nos apresenta à jovem Anne (Anamaria Vartolomei), uma estudante promissora que resolve esconder uma gravidez inesperada às vésperas do vestibular. Afinal, um filho, ainda no começo da vida adulta, poderia representar a interrupção do sonho de seguir uma carreira na área de Letras. Enfim, de ter independência, liberdade e autonomia, especialmente em relação ao futuro. Só que, em 1963, a visão da sociedade patriarcal é apenas uma: abortar é se tornar, automaticamente, uma criminosa. Uma assassina. Para os familiares, para os médicos, para a Igreja, até para alguns amigos. O que tornará a jornada de Anne absolutamente solitária na tentativa não apenas de manter a gestação em segredo, mas também de descobrir alguma forma, qualquer que seja, de cessar a gravidez.


Contada em pequenos capítulos que são pontuados pelo avançar das semanas de gestação - quatro, seis, dez -, a protagonista se empenha em esconder a barriga que cresce, ao passo em que mantém o silêncio sobre a questão. No consultório do ginecologista chega a afirmar ser virgem, para ouvir do médico uma resposta seca: "você está grávida". Numa outra consulta, o profissional não apenas a demove da ideia, como lhe prescreve um medicamento que fortalece o sistema hormonal - e consequentemente o feto em formação. Medidas desesperadas que vão no limite da automutilação contribuem para que a experiência seja agoniante, sufocante e até eventualmente assustadora. É quase como um filme de terror sobre uma jovem absolutamente fragilizada, que tenta desesperadamente sobreviver a um entorno opressor, enquanto tenta encontrar em um beco qualquer um abortista que não se comporte como um carniceiro.

Com ótima caracterização de Vartolomei, o filme da diretora Audrey Diwan se vale do uso da câmera bastante próxima do rosto de seus personagens - focando reações, detalhes do olhar, gestos e sutilezas -, o que amplia certa sensação de desespero, especialmente conforme o avançar das semanas. A trilha sonora de notas cortantes, meio tortas, caóticas, também contribui para um senso de instabilidade meio generalizado e irreversível, que evoca do roteiro bem costurado. E há por fim, o aspecto bastante gráfico e até ousado das sequências em que os invasivos procedimentos são executados que, de forma paradoxalmente contrastante, surgem violentas, agressivas, ao passo em que Anne se exaure na intenção de manter um silêncio forçado (para não chamar a atenção). Grande vencedor do Festival de Cinema de Veneza no ano passado, O Acontecimento pode até não ser um... acontecimento. Mas o simples fato de chamar a atenção para um tema tão relevante e atual quando o acesso a um aborto seguro já faz valer a pena.

Nota: 8,5


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