sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Livro do Mês - Dias de Abandono (Elena Ferrante)

Dias de Abandono foi o meu primeiro contato com um livro da Elena Ferrante - a misteriosa escritora que pouco se sabe - e eu fiquei simplesmente impactado pela sua sinuosa escrita. Trata-se de uma obra de temática bastante simples: mulher é inesperadamente deixada pelo marido e precisa lidar com os dias (e meses) seguintes, passando por todas as etapas que envolvem o luto por uma separação - da negação inicial, passando pela raiva, até chegar num processo de aceitação. Só o que torna essa obra bastante diferente das demais é a franqueza com que Olga, a protagonista, encara a mesquinharia do entorno, o vazio dos dias e a depressão que lhe invade. Com uma sinceridade (quase) alarmante ela não hesita em verbalizar o quanto está de saco cheio dos seus filhos - de seus choros e ranços - naqueles dias seguintes, ao passo em que tenta reencontrar sentido em uma rotina que, agora, parece ausente de motivação: para o trabalho, para encontros com os amigos, para qualquer distração. Há apenas uma nuvem carregada. E Olga, tal qual o personagem de Jim Carrey em O Show de Truman, está posicionada abaixo dela.

O marido de Olga é Mario. Após quinze anos de casamento, ele simplesmente "descobre" que o amor acabou. O amor, a paixão, ou qualquer coisa que os pudesse manter conectados. Aliás, anuncia que a está abandonando após um almoço qualquer, num dia qualquer, como se fizesse parte de algum tipo e informe de rotina, enquanto ambos tiravam a mesa, as crianças brigavam, o cachorro se amainava. Só que para Olga, o que pesa nesse conjunto que vira um turbilhão é a tranquilidade, a placidez com que o, agora ex, encara tudo. Está indo embora com uma jovem mulher mais nova, filha de uma antiga amiga. Aliás, uma mulher bem mais nova, que talvez não ultrapasse os 25 anos. Olga tem dificuldade em aceitar, perde a compostura: encontra ambos na rua e, se for preciso, parte para a agressão, para a baixaria. Acaba por se tornar uma espécie de "vilã involuntária": a anti-heroína que sofre sobrecarregada, enfurnada em uma casa inóspita, doente, dura. Em seus dias de autocomiseração é consumida pelo ciúme, pela inveja, pela vergonha. Pela mesquinharia.

E mesmo que a linguagem seja bastante direta, Ferrante trata de ocupar suas páginas com figuras de linguagem diversas, metáforas, hipérboles, que dialogam de forma honesta com o processo angustioso e obsessivo vivido pela protagonista. Vai percebendo aos poucos como a mecanização dos dias pode ter esmaecido a relação: tornado-a oca mesmo quando tudo parecia bem, tudo estava tranquilo, com os beijos sem paixão sendo dados no piloto automático, enquanto a vitalidade do entorno ruía. Símbolo dessa nova fase de sofreguidão, o cachorro Otto retorna para a casa após um passeio aleatório em algum dos dias seguintes e se vê padecendo de algum mal meio em explicação: está apático, doente, vomita. Talvez tenha sido envenenado. Talvez esteja apenas contaminado pelo entorpecimento das mudanças sentidas nos donos. As eventuais visitas de Mario para ver os filhos, ou para tratar de algo relacionado à separação se tornam exasperantes, vis. Há quase um clima bélico permanentemente instalado. Algo incômodo, intranquilo. É uma obra que, ao cabo, constrange, desagrada. E nos vicia.

Por que, no fim das contas, em maior ou menor medida, a história de Olga é a história de cada um de nós. De nossas dores, de nossos sofrimentos. Quem nunca chorou por ter sido deixado de lado mesmo quando tudo parecia tão bem pode atirar a primeira pedra. A vida é imprevisível e é na nossa mente que a gente monta as imagens, constrói as histórias, projeta sonhos, desejos. Que serão ou não cumpridos. Que gerarão ou não expectativas. Frustrações. Olga talvez demore um pouco para perceber que, ali adiante, há muita vida a ser vivida. Há muita natureza a ser curtida. Livros, arte, música. Um show inesperado, um instrumentista simpático, iluminado. Coisas aleatórias que poderão preencher nosso cotidiano com alguma cor, com alguma esperança. Isso significa que "cabeças não serão quebradas?". Não, não significa. Isso significa não enfrentar o constrangimento de encarar família, amigos, depois de algum "fracasso"? Não, tudo segue igual. Mas seremos somente nós que poderemos lidar com isso. Com esse turbilhão. Nós, nosso pensamento, nossos dias e noites tormentosos, enquanto a primavera não chega. Mas a gente sabe. Todos sabemos: ela algum dia, há de chegar.

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