terça-feira, 14 de abril de 2020

Livro do Mês - Liberdade (Jonathan Franzen)

Ao lado de Jonathan Franzen, não foram poucos os autores que se aventuraram em dissecar as vísceras do american way of life e, consequentemente, a completa derrocada do sonho americano. De O Som e A Fúria de William Faulkner até Pastoral Americana de Philip Roth foram muitos os escritores que tentaram traduzir o sentimento de uma época, um tipo de zeitgeist de seu tempo, na literatura dos Estados Unidos. E não é diferente com Liberdade, que se aproxima do décimo ano de seu lançamento, mantendo a sua exegese intacta. No decorrer de suas mais de 600 páginas assistimos, embasbacados, como funciona o microcosmo dos Berglund, uma família de classe média tipicamente americana, cheia de contradições e de frustrações, se sonhos nunca concretizados, de arrependimentos materializados em escolhas erradas, ainda que bem intencionadas, em um contexto social que suga de suas figuras qualquer fiapo de esperança. Em uma narrativa descomplicada, Franzen evidenciará que somos figuras complexas e de escolhas igualmente complexas.

A propósito disso, não será difícil identificar em cada um de nós o idealismo juvenil de Walter - um dos protagonistas. Cheio de boas intenções, é preocupado com o meio ambiente, possui uma agenda claramente progressista, é gentil com as mulheres - entre elas a futura esposa Patty. Mas se verá as voltas, no futuro, com a indústria de mineração de carvão, que promete um projeto megalomaníaco de reflorestamento e de manutenção do ecossistema como contrapartida para seus negócios escusos. Walter precisa pagar as suas contas, afinal: os boletos vencem, as crianças, Joey e Jessica, estão crescendo, em meio a um mundo tecnológico, urgente, que olha com carinho para pessoas de sucesso e que pensem no dinheiro como uma estratégia central de suas vidas. Já Patty é a esposa que nunca aconteceu como jogadora de basquete, o que pontua um outro aspecto onipresente na discussão social: o do patriarcalismo que reina até hoje na sociedade. Relegada a dona de casa (e a mãe), saturará seus filhos até o limite da paciência, pesando nas costas deles a carga emocional que decorre de suas frustrações.


Na narrativa urgente (e paciente) de Franzen, perceberemos como as vidas de cada um daqueles que acompanhamos nunca aconteceu como de fato sonhavam. No decorrer de quase 40 anos, as idas e vindas darão conta de escolhas mal feitas, mágoas acumuladas e comportamentos ambíguos que preenchem um período histórico e de transformações que se inicia na Era Reagan e culmina nos anos de George W. Bush - com o conservadorismo das "famílias de bem" também sendo um componente dessa intrincada rede de valores mal celebrados e de relativização do termo "liberdade" (quem, afinal de contas, é livre entre todos aqueles que acompanhamos?). Gravitando no entorno de Walter e Patty ainda estará o músico Richard, que parece ter um tipo de paixão mal resolvida com os DOIS, sendo o responsável por ampliar o sentimento generalizado de que a rota nunca está sendo bem traçada e que a grama alheia parece sempre mais verde que a nossa. Que o diga os vizinhos de Walter e Patty, o dolorosamente republicano Blake, sua esposa Carol e sua filha Connie.

Admito que este foi o primeiro romance de Jonathan Franzen que li - e parece que o seu trabalho anterior, As Correções, já dava conta dessa análise de um contexto em que a juventude cheia de sonhos se contrapõe a uma velhice atolada até aqui de arrependimentos. E em que o idealismo do passado é confrontado com a urgência do futuro. Todos precisamos (tentar) nos formar, trabalhar, ganhar um salário honesto. Cuidar da casa, dos filhos. No final das contas, tal qual a música de Belchior, nós meio que "nos transformamos" nos nossos pais conforme percorremos as nossas trajetórias cheias de contradições e complexidades. E que fique claro também o fato de que não devemos julgar demais, afinal de contas: olhando para trás, em nossas vidas, fizemos também nós apenas escolhas acertadas? E a meu ver, é nesse olhar para si mesmo que se estabelece a magia de Franzen: quando nos reconhecemos justamente naqueles que estamos acompanhando. Somos pessoas, afinal, buscando a felicidade. Acertando e errando. E é isso que torna esta narrativas envolvente tão representativa de nossos tempos confusos. Vale demais descobrir.

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