quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Picanha em Série - O Gambito da Rainha (The Queen's Gambit)

De: Scott Frank. Com Anya Taylor-Joy, Harry Melling, Thomas Brodie-Sangster e Marielle Heller. Drama, EUA, 2020, 393 minutos.

Depois de muita resistência, em parte pelo ranço causado pelo hype insistente nas redes sociais (motivo pelo qual ainda não assisti produções renomadas como Game of Thrones e The Crown, por exemplo), em parte pelo total desinteresse por uma obra que retrate jogos de xadrez, decidi assistir à minissérie protagonizada pela maravilhosa Anya Taylor-Joy, (Fragmentado, Emma) na qual interpreta uma jovem enxadrista, órfã, atormentada pelo alcoolismo e por seu vício em calmantes. É preciso admitir que esta produção da Netflix consegue, em apenas oito episódios, entregar o que seja, talvez, o melhor drama de 2020.

Baseado no romance homônimo de Walter Tevis, publicado em 1983, O Gambito da Rainha (The Queen's Gambit) narra a história de Elizabeth Harmon, partindo desde a perda da mãe, o que a leva para um rígido orfanato, até a sua juventude, enquanto caminha para se tornar uma das maiores jogadoras de xadrez do mundo. O enredo, apesar de bastante simples, consegue transmitir ao público todo o glamour e complexidade dos anos 60 nos Estados Unidos. O visual da produção é encantador ao retratar a estética norte-americana da época, a moda, os carros, as decorações dos lares suburbanos, os uniformes colegiais e toda a ambientação de um povo que parecia não conseguir viver sem a possibilidade de um drink e um cigarro. Contudo, o maior valor da produção não reside em questões técnicas ou externas, mas na sensibilidade da protagonista e nas relações que são construídas ao seu redor. 



Beth Harmon passou boa parte da sua infância acostumada a passar suas noites em um quarto coletivo, com outras inúmeras órfãs, precisando agir e vestir-se da forma como todas eram ensinadas, afinal, alguém só iria adotá-la se seguisse um determinado padrão de boas notas e bom comportamento. O primeiro choque de realidade se dá quando Beth percebe que todas as jovens dali, sem exceção, deveriam tomar dois comprimidos, uma vitamina e um calmante. Dessa forma, o instituto exercia um poder de controle sobre as moças que ali estavam. Este também é o motivo pelo qual Jolene (Moses Ingram) se aproxima de Beth e, juntas, começam a criar um bonito laço de amizade. A jovem amiga de Beth, única negra no orfanato e, portanto, com menores chances de encontrar um lar, é uma óbvia referência ao racismo estrutural. É neste cenário, entre uma aula de canto e um um vídeo sobre boas maneiras, que Beth vai ao porão e vê o zelador Mr. Shaibel (Bill Camp), homem silencioso e solitário, jogando uma partida de xadrez. Aquele tabuleiro quadriculado e aquelas peças seguindo movimentos rígidos encantam a menina que, pela primeira vez na vida, consegue ver algum tipo de ordem, uma possibilidade de controlar algo no mundo.

Fora do orfanato depois de ser adotada por um casal americano em crise, Beth vê uma janela para poder seguir uma carreira no xadrez, mas é constantemente confrontada por um ambiente totalmente masculino e descrédulo, que não admitiria ter uma mulher como a melhor em um jogo amplamente dominado por homens. É em meio às várias disputas que a produção prende o espectador com cenas por vezes angustiantes, mas que transmitem toda a complexidade e, quem diria, emoção de um esporte que parece ser frio e calculista, apenas. A cada olhar penetrante dos jogadores, a cada nova estratégia utilizada pelo oponente, a cada movimento de peças somos levados a um universo peculiar e desconhecido, que gera hoje, no mundo, um crescimento exponencial na busca de filmes, livros e acesso aos sites de jogos de xadrez. As sequências nos torneios nos deixam apreensivos e preocupados com o rumo de partidas que, convenhamos, ninguém está entendendo.

Infelizmente Beth Harmon é apenas uma personagem. Porém, todo o processo de amadurecimento e conquista de perspectiva sobre o que realmente importa na vida é assustadoramente real. A personagem é daquelas que nos fazem lamentar a sua não existência em “carne e osso”, aqui, no nosso mundo. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas para construir a sua brilhante carreira, Beth sofre, sobretudo, com os relacionamentos, seja com sua nova família (que nos presenteia com uma atuação brilhante e muito sensível da sua mãe adotiva), seja com seus colegas e oponentes enxadristas. A menina que aprendeu a se virar sozinha na infância precisa conviver com seus pares, aprender as nuances de cada personalidade e entender o que é preciso para ser realmente feliz: estar aberta aos outros, rir, chorar, beber e construir uma família, ainda que não seja somente de sangue. Isso ocorre de forma genial ao longo da minissérie, concluindo a narrativa com uma das cenas mais tocantes de 2020, sem sombra de dúvidas.

Ao unir fantasia, vícios, amores e uma realidade brutal, “O Gambito da Rainha” atinge o seu objetivo de forma plena e tocante. Não vou me abster do óbvio clichê: a obra é certeira, um verdadeiro xeque-mate. 


 


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