quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Livro do Mês - Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas (Elvira Vigna)

É muito provável que poucos autores consigam dissecar a essência da escrotidão do macho hétero topzera como a Elvira Vigna, em seu Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas. Bom, antes de mais nada é preciso fazer um parêntese sobre o "palimpsesto" em si: eu nunca tinha ouvido essa palavra antes na vida e confesso que comprei o livro TAMBÉM pela excentricidade do título (sim, eu faço isso de vez em quando), quando o vi em uma lista publicada pela Revista Bula. Bom, no dicionário o palimpsesto é descrito como uma espécie de pergaminho que tem o seu conteúdo de origem raspado, para dar lugar a outro texto. No caso da obra de Elvira, o vocábulo surge como uma forma de definir o tipo de relação que duas pessoas completamente estranhas passam a ter, quando uma delas começa a fazer a outra uma série de relatos sobre encontros frequentes com prostitutas. Como num palimpsesto, as histórias e seus detalhes se sobreporão, formando um pequeno painel sobre a falência completa dos relacionamentos, bem como suas mentiras e jogos de poder.

Quem narra a história é uma designer de que não sabemos o nome. Contratada pra tentar dar um upgrade em uma editora que se encaminha para o processo de falência, conhece João nas tardes em que ele trabalha para informatizar o local. Em cada história ouvida pela nossa interlocutora - saídas diretamente de inferninhos, de prostíbulos de quinta categoria e de hotéis decadentes - os detalhes narrados com uma autoestima constrangedora, ainda que as pontas soltas (e que são realinhadas e ressignificadas pela protagonista), deem conta de desmantelar o suposto ar superior com que João desnovela seus relatos. Faltam detalhes, as tramas parecem contadas pela metade e é dessa forma que se sobressaem pequenas inseguranças em que a masculinidade frágil parece se espalhar com toda a sua força. João supre o vazio de seus dias em um casamento infeliz comendo putas. Andando pelo submundo, num comportamento quase paranoico do ponto de vista sexual. Pensa estar no comando ao pagar alguém para transar com ele. Não está.


João se sente a vontade para contar as histórias para a sua colega designer, porque ela mora com uma prostituta de nome Mariana - um tipo de arranjo provisório que desafoga as despesas de ambas. Ele está separado no momento, mora em um pequeno apart hotel e acredita que a "amiga", por morar com Mariana, está familiarizada com o tema. Não está. Não fala que não está e faz pouco para mudar esse contexto. Apenas ouve as histórias. E ouve mais um pouco. Tece algumas análises perspicazes e até eventualmente existencialistas sobre a relação homem x mulher. Utiliza algumas referência culturais - como é o caso da Eneida, do poeta Virgílio -, para estabelecer alguns paralelos com aquilo que escuta. E utiliza metáforas consolidadas, como aquela que compara as "carnes no açougue", com os corpos expostos em um prostíbulo, seus peitos, suas coxas e suas bundas. É uma obra que não faz concessões, tratando com naturalidade estonteante a temática do "sexo pago" e do universo masculino em redor dele.

Com um textos cheio de frases curtas, fragmentadas, o estilo de Elvira é urgente e denso, mas ao mesmo tempo divertido, conciso. Com uma série de frases de efeito, utiliza as idas e vindas no tempo de forma fluída para construir uma colcha de retalhos em que ainda aparecem outras personagens, como a transexual Lurien e Lola - vizinha e ex-mulher de João respectivamente. Lola tem papel importante em uma espécie de reviravolta que alterna a noção de "poder" estabelecida entre os sexos - e que o terno bem cortado de João não dá conta. Nesse sentido a história pode também ser considerada debochada na análise do suposto predatismo do homem moderno, que busca compensar e deslocar ausências afetivas que lhe atingem em outras esferas. Nunca havia lido um livro da Elvira Vigna - que nos deixou cedo, vítima de um câncer de mama em 2017, com apenas 69 anos. Mas este pode ser a porta de entrada para o contato com outros títulos, como o elogiado O Que Deu Para Fazer em Matéria de História de Amor - aliás, mais um livro com título instigante.

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