De: Fábio Meira. Com Vera Holtz, Louise Cardoso, Arlete Salles e Amanda Lyra. Drama, Brasil, 2023, 95 minutos.
Quem já parou pra ouvir na íntegra os cerca de dezesseis minutos do Bolero de Ravel sabe que, a despeito do ritmo sem muitas variações e da melodia uniforme e repetitiva, a orquestração vai subindo, conforme a música avança - até explodir em um clímax quase caótico com o instrumental marcado pelo saxofone vigoroso e pelos pratos e bumbos potentes. Nesse sentido, talvez não seja por acaso a escolha da obra como forma de marcar o ápice dos acontecimentos do ótimo Tia Virgínia, filme do diretor Fábio Meira (de As Duas Irenes, 2017) e que acaba de estrear para aluguel na plataforma da Claro TV. Em alguma medida é justamente esse o tipo de evolução que observamos nessa narrativa tipicamente familiar - em que três irmãs e outros parentes se reúnem para celebrar o Natal. Ocasião perfeita não apenas para comemorar, mas para fazer vir à tona mágoas, chantagens emocionais e outros conflitos domésticos.
Sim, a gente já viu essa história dezenas de outras vezes, mas aqui há todo o charme da classe média tipicamente brasileira - com o misto de afeto e raiva sendo ampliado pelas entregas comoventes das atrizes Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso que, aparentemente, teriam o desejo de estar fazendo qualquer outra coisa no mundo, do que estarem reunidas entre si no dia 24 de dezembro (o que é uma coisa meio normal, ainda que grande parte das pessoas não admita isso). "Às vezes tenho a impressão de que no Natal eu envelheço o que envelheço no ano inteiro", comenta Virgínia (Holtz), num tom ranzinza e irônico, ainda no começo do filme, o que ditará o seu comportamento dali pra frente. Protagonista, a tia Virgínia é uma idosa que ocupa seus dias em meio a atividades prosaicas, como ajustar pacientemente o pêndulo de um antigo relógio mecânico, e os cuidados com a mãe (a veterana Vera Valdez), uma nonagenária que parece estar com perda de memória.
Aliás, cuidar da mãe, como veremos mais adiante, parece ser um fardo carregado por uma mulher que escolheu ser solteira a vida toda, sem filhos. O que não evitará julgamentos dos demais. Quando Valquíria (Cardoso) e, especialmente, Vanda (Salles), chegam a casa, o desequilíbrio daquele tecido doméstico vai se ampliando. Sensação fortalecida por pequenas rimas visuais e detalhes que evidenciam o senso de ruptura de um grupo de pessoas que talvez nunca tenham sido tão próximo, mas que se forçam a isso para que rituais e convenções sociais sejam cumpridos. Onde já se viu, afinal, não haver um encontro de família no Natal? Na primeira sequência em que as três irmãs estão juntas em cena, Virgínia se queixa a respeito da cor das suas rosas, que não parecem ser mais tão vistosas, como em outros tempos. "É a ação do tempo, né, o presépio também está desbotado", comenta Valquíria, ampliando o componente alegórico que envolve a passagem do tempo.
Essas pequenas críticas sobre o cheiro da casa, sobre uma visita não realizada aqui e ali ou sobre uma simples janela fechada para que se evite a entrada de poeira, serão motivo para choques minúsculos em uma casa naturalmente não muito grande, sombria, antiga - o que amplia o sentimento de claustrofobia e de completa falta de autonomia. Os sobrinhos da tia parecem nutrir certo carinho por ela, mas só até o momento em que se percebem outras intenções como motivação - especialmente as financeiras. Em meio a longas divagações sobre quem fica em cada quarto, ou a respeito de qual prato será cozinhado, Virgínia inevitavelmente surtará. Há segredos relacionados a casa e traumas vividos após a morte do pai delas, sendo o estopim a discussão sobre colocar ou não uva passa em uma receita de arroz. Aliás, nada mais família do que isso. O de converter problemas inexistentes em sofrimentos gigantescos. Ao cabo, o resultado desse conjunto é uma experiência divertida, turbulenta e irresistível.
Nota: 8,5
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