sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Picanha.doc - Tudo o que Respira (All That Breathes)

De: Shaunak Sen. Documentário / Drama, Índia / Reino Unido, 2022, 97 minutos.

Um grupo de aves de rapina voa quase como num balé fluído, coreografado, em um céu azul escuro denso. A câmera lenta os acompanha de forma vagarosa, sem pressa. A trilha sonora entre o eletrônico e o onírico produz em efeito evocativo, de caos sincronizado. De forma contrastante a metrópole acinzentada surge urbana, povoada, caótica. Concreto, lixo, esgoto, cabos, tubos, metal. Corujas, ratos, macacos, porcos, moscas, cães - a natureza buscando uma sobrevida em um cenário que quase se assemelha ao de uma distopia futurista em que as coisas deram muito errado. Estamos em Nova Delhi, capital da Índia. E não demora para compreendermos que Tudo o que Respira (All That Breathes), documentário indicado ao Oscar 2023 - e que está disponível na HBO Max -, é menos sobre os irmãos que se ocupam de resgatar milhafes-pretos e mais sobre a nossa relação com a natureza como um todo. 

Em tempos de aquecimento global, de falta de cuidado com o meio ambiente, de iniciativas modestas que careceriam de mais visibilidade, qual o legado que deixaremos, afinal? Claro, a recuperação do milhafre-preto, essa ave de rapina carnívora que tem grande contribuição pelo seu perfil necrófago (se alimenta de restos mortais de pombos e ratos, por exemplo, sendo bastante vista nos grandes centros urbanos), funciona aqui como uma metáfora importante da preservação - e o esforço dos irmãos Nadeem, Salik e Saud é não menos do que comovente. Só que, por mais adaptado que o animal seja à presença humana, estamos vivendo um pequeno "probleminha" de poluição atmosférica meio exagerada na atualidade. O que faz com que a ave sofra. Se despenque de seu voo. Por maior que seja o seu improviso na hora de lutar pela sobrevivência.

Sensorial e cheio de simbolismos, o filme do diretor Shaunak Sen é daqueles que se estende em suas longas tomadas. Não há pressa e é justamente esse senso de demora em meio a tanta urgência, que parece nos deixar meio nauseados. Em uma sequência, por exemplo, dois dos irmãos resolvem adentrar um rio absolutamente sujo - mas sujo num modo que dá a impressão de eles estarem entrando em uma piscina de petróleo - para salvar UM pássaro. Um, apenas um. Que caiu para além da margem. E está machucado. Um esforço de quem não apenas ama a natureza, mas vê naquilo um tipo de propósito quase místico, meio divino. "A mãe explicava pra nós que quando cuidávamos dos milhafres recebíamos de volta créditos religiosos (sawab)", argumenta um deles. As lembranças se fundem em meio a memórias que quase se convertem em delírios sobrenaturais. Nem parece combinar tanto com aquele cenário de apocalipse em tempo real.

Aliás, o componente religioso é parte integrante da narrativa - tanto que em meio a um salvamento e outro nos deparamos com alguma TV ou rádio ligados, que noticiam alguma crise envolvendo refugiados e de como a Índia está de braços abertos para os seus irmãos paquistaneses ou de Bangladesh (mas desde que eles não sejam islâmicos, claro, porque a "tolerância" deles tem limite). E, nesse sentido, é quase impossível não pensar no abnegado trabalho dos irmãos como uma espécie de esforço de formiguinha em meio ao caos do mundo - sem muitas perspectivas, com pouca esperança. Ainda que, aqui e ali, uma matéria no NY Times tenha lhes dado visibilidade, possibilitado acesso a algum recurso. Um dos irmãos lembra, sobre as questões políticas e religiosas, que a "violência é um ato de comunicação". Estamos, ao cabo, em um mundo violento. Que agoniza. Que clama por socorro. Um milhafre rouba o óculos de Saud, em uma cena inusitada. É um dos únicos instantes em que ele dá risada. O trabalho, afinal, chama. Não para. Já são 20 anos nessa lida. E nada indica que irá mudar.


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