terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Novidades em Streaming - A Mão de Deus (È Stata la Mano di Dio)

De: Paolo Sorrentino. Com Filippo Scotti, Toni Servillo, Luiza Ranieri e Teresa Saponangelo. Drama, Itália, 2021, 130 minutos.

Foi aos seis minutos do segundo tempo no Estádio Azteca, no México, que o zagueiro da Inglaterra Hodge tentou afastar a bola dando uma rosca pra dentro da própria área. Esperto, ágil e ardiloso, o craque Maradona perceberia, numa fração de segundos, a oportunidade, saltando junto ao goleiro Peter Shilton para tocar "de cabeça", fazendo o primeiro gol da Argentina. Seria que assim que o dia 22 de junho de 1986 entraria para a história não apenas das Copas do Mundo, mas do futebol. Afinal, o instante decisivo, controverso - um gol de mão em uma disputa de quartas de final da competição -, marcaria o bicampeonato de nossos hermanos, enquanto a imprensa estarrecida, tentava compreender o que havia ocorrido. Ao final do jogo, questionado sobre o feito, el pibe de oro comentaria debochado, de que havia sido "la mano de Dios". Nascia o mito, a lenda. Um fato que permaneceria eternizado na memória dos fãs do esporte. E que extrapolaria as quatro linhas do gramado, funcionando como metáfora política perfeita após a Guerra das Malvinas.

E o mais recente filme do diretor italiano Paolo Sorrentino - dos maravilhosos A Grande Beleza (2013) e A Juventude (2015) - não se chama A Mão de Deus (È Stata la Mano di Dio) por acaso. A sequência está lá, em meio a tantas outras da obra autobiográfica, nostálgica e afetiva do realizador, que vasculha as suas memórias da juventude em Nápoles, para nos entregar mais uma de suas narrativas fragmentadas, episódicas, que se organizam e se recombinam para formar uma verdadeira colcha de retalhos sobre experiências pessoais, sobre perdas e sobre amadurecimento. A Mão de Deus - a de Maradona - pode ter sido obra de um daqueles inesperados acasos que acontecem uma vez na vida e outra na morte. Aliás, a nossa vida costuma ser assim. Recheada de desencontros, de fatos aleatórios, de eventualidades que, aqui e ali, formarão a nossa personalidade, nosso caráter. Nos farão crescer, superar obstáculos. Enfim, evoluir.

Na temporada 1986/1987 ninguém poderia prever que o Napoli venceria pela primeira vez na história o campeonato italiano da Série A - com o time movido, claro, pela fúria indomável de Maradona. E quem gosta de futebol sabe a importância do esporte na nossa formação. Quem não riu ou chorou inesperadamente com o Inter ou com o Grêmio nessa vida? Ao mergulhar em seu próprio passado, Sorrentino nos apresenta a uma coleção felliniana de personagens - das tias gordas e de seios enormes, passando pela avó que parece só se comunicar por palavrões e pela vizinha excêntrica e solitária, até chegar ao traficante tão divertido quanto violento e à tia sensualíssima - mas que parece possuir severos problemas psicológicos. Juntar esse amontoado de gente que surge, aqui e ali, em pequenas sequências que podem aparentar certa falta de lógica, e que ficam comprimidas em um sem fim de experiências exóticas, meio realistas meio oníricas, é o que torna a experiência com A Mão de Deus tão satisfatória. 

É claro que, para alguns paladares, essa falta de uma maior consistência narrativa pode reduzir a empolgação - talvez tornando o filme até meio longo e cansativo. Mas a vida, suas tragédias e conquistas, encontros e desencontros, casualidades e imprevistos é relatada aqui com grande apuro técnico - especialmente no que diz respeito aos longos (e belos) planos sequência, à fotografia meio granulada, que parece remeter de forma fiel aos anos 80, e à trilha sonora que ajuda a estabelecer o estado de espírito daqueles que acompanhamos. E há ainda as ótimas interpretações, especialmente do jovem Filippo Scotti, que empresta a seu Fabietto o olhar cheio de incertezas que é uma das tantas marcas da adolescência. Ninguém costuma saber o que vem pela frente. Nem onde tudo vai dar. Nosso time ganhará o campeonato? Será rebaixado? Qual será o assunto do almoço em família? Como lidaremos com as nossas perdas? Ou celebraremos nossas vitórias? Sorrentino não responde tudo. Na realidade ele nem quer isso. À moda de um Marcelo Mastroianni saltando de um evento a outro em meio a burguesia torpe e fútil em A Doce Vida (1960), ele nos faz refletir sobre tudo isso. E, nesse caso, é a trajetória que vale.

Nota: 8,5

2 comentários:

  1. Lindo amado Tiago Bald.

    Só mesmo alguém com tamanhaaaa bagagem cultural, consegue definir de forma tão aconchegada o filme que passei 30 minutos (após assistir) dizendo ....

    Qual o objetivo do filme ?.....Bom, claro...não faz meu estilo mesmo ...e não tenho problema em reconhecer.

    Mas obrigatoriamente preciso reconhecer o fatos de grande valor cultural que você, de forma única, apresenta nesta resenha.

    Nota 10. Muito nota 10. 😘

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    1. Querida que você é meu amor. Obrigado por se desafiar a assistir a estes filmes, por manifestar suas impressões sobre eles e por deixar um comentário tão carinhoso por aqui. Aliás, obrigado pelo incentivo de sempre. Te amo!

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