"Essa música surgiu como tantas outras, sem pensar muito". Vamos combinar que se fosse outra artista falando essa frase, que não a Adrianne Lenker, e ela poderia soar apenas presunçosa. Mas não é o caso da vocalista do Big Thief, porque é simplesmente impressionante a capacidade dela - e de sua banda - de simplesmente produzirem grandes canções, sem que haja um grande esforço. Com o resultado sempre sendo uma coleção impecável de discos, que tem por marca aquele indie folk encharcado, meio diluído em névoa, que se torna gigante não pelo grande aparato tecnológico, mas sim pela sua total discrição. Tudo soa moderado, mas rigoroso. "É uma canção espiritual sobre fazer amor. É sobre tirar essa vergonha dos nossos corpos, do nosso sexo, da nossa cultura", comentou ao site inglês INews, a respeito de All Night All Day, a tal canção feita sem "muito pensar", que integra o recente Double Infinity.
Ainda assim, é importante reiterar que simplicidade - talvez pudesse ser chamado também de conforto - nunca significa negligência. Em momento algum a sonoridade soa opaca demais, sem brilho ou personalidade. Ao contrário, mesmo quando o agora trio (após a saída do baixista Max Oleartchik), formado ainda por Buck Meek e James Krivchenia, fala de temas cotidianos e nostálgicos, como no single Incomprehensible, que aborda o medo de envelhecer e a efemeridade da juventude (Daqui a dois dias vou fazer aniversário e vou fazer trinta e três / Isso realmente não importa diante da eternidade), tudo soa maior, mais estofado. Com um toquezinho de psicodelia meio mágica, reforçada pela cítara que aparece um canções como Grandmother, o álbum poético até dizer chega, é daqueles que cresce a cada audição. Evidentemente, sem que haja qualquer esforço.
De: Kathryn Bigelow. Com Rebecca Ferguson, Tracy Letts, Idris Elba, Gabriel Basso e Jared Harris. Suspense / Drama, EUA, 2025, 113 minutos.
"Então gastamos 50 bilhões de dólares para isso?". A frase dita pelo secretário de defesa Reid Baker (Jared Harris), em um dos pontos altos de Casa de Dinamite (A House of Dynamite) talvez passe batida pelo espectador mais desavisado. A ponto de ela retornar no terço final, como uma espécie de lembrete do absurdo da guerra. Será que, nos tempos atuais, naturalizamos esse tipo de aporte financeiro destinado a tanques, mísseis e outros equipamentos que incluem o aparato bélico? Vocês entenderam a dimensão disso? Cinquenta BILHÕES de dólares, na ideia de acertar uma "bala com outra bala"? E que, ainda por cima, falha na hora decisiva. Qual o propósito, afinal, disso? Qual a lógica de simplesmente aguardar o fim do mundo, enquanto um bando de burocratas fardados ou uniformizados decide sobre botões a serem apertados? E que resultarão na morte ou não de milhares de civis?
Desde a ascensão dessa extrema direita tosca - que tem na figura de Donald Trump o seu mais alto representante -, que o medo de uma possível terceira guerra mundial ronda o planeta. Se em tempos de Guerra Fria, o diretor Stanley Kubrick optou pelo deboche como ferramenta, no inesquecível Dr. Fantástico (1964), o tom sério e meio envolto por ideais sobrevivencialistas (com direito a imagens aéreas de um bunker gigantesco), não me parecem gerar o mesmo efeito. Aliás, pior, talvez só resulte em medo. E em pessoas achando que os Estados Unidos devem dobrar a aposta quando o assunto forem os confrontos que quase parecem inevitáveis, entre nações. Se for preciso gastar 50 bilhões de dólares? Que se gaste. Se dez milhões de pessoas vão morrer nos arredores de Chicago? Azar, temos de contra atacar para não sermos taxados de covardes. De fracos. Na eterna disputa por quem tem o maior pênis, em um quadro provável de micropenia coletiva, que só pode ser compensada com bazuconas.
Sim, o que o filme de Bigelow - que ganhou o Oscar por Guerra ao Terror (2009) - tenta imaginar é como os Estados Unidos reagiriam diante de uma ameaça catastrófica: um míssil nuclear lançado de algum lugar do Pacífico, sem origem identificada. E sem autoria clara. E que explodirá nos arredores de Chicago, massacrando parte da população de um dos seus principais estados. Como baratas tontas, generais, secretários de defesa, integrantes do Pentágono e o próprio presidente dos Estados Unidos, encarnado com niilismo por Idris Elba, batem cabeça para tentar decidir os próximos passos. O artefato deve colidir em 19 minutos. Não há tempo para um plano de evacuação. A tentativa de abater uma bala com uma bala falha miseravelmente (com 50 bilhões de esfarelando) e só resta o que muitos ali fazem: chorar, pensar nos seus familiares, se apegar às rotinas pacíficas, distantes desse mundo hostil.
Como eu disse, parece haver aqui e ali uma mensagem legítima antiguerra - e que talvez esteja na simples beleza da vida de cuidar de um filho doente ou de projetar pedir alguém em casamento. Mas que também aparece em discursos tolos e mesmo no comportamento idiotizado de certas figuras que deveriam tomar decisões claras - mas não tomam. Em geral o mundo está a deriva, se ficarmos nas mãos dessas figuras que são hábeis em explodir bombas atômicas, mas que são péssimas em diplomacia. Em relações institucionais. A meu ver um filme como esse pode aumentar o sentimento de paranoia. Por mais que, lá no meio, em uma criação propositadamente teatral da Guerra da Secessão, a oficial de inteligência Ana Park (Greta Lee), lembre que apenas a Batalha de Gettysburg tenha resultado em quase 50 mil mortes.
É um absurdo a guerra, né? Mas quando há tanta gente falando em tela sobre os "inimigos" de sempre - Rússia, China, Coreia do Norte e outras ameaças "comunistas" (como se estivéssemos em uma produção dos anos 80) - e repetindo toda a encenação por outros dois pontos de vista distintos, não sei se a mensagem, se é que há mensagem, cola tão bem. O primeiro terço, o que Rebecca Ferguson como a capitã Olivia Walker aparece, é bem urgente, angustiante, tenso. Depois, tudo meio que se dilui, quando a coisa migra pra outras salas e outras siglas e outras tentativas de decidir algo. Quase caindo no banal. Algo que nem as mensagens espalhadas de "pare o genocídio" em cartazes ao fundo, enquanto crianças circulam pelas ruas tranquilamente, parece amenizar.
Vamos combinar que esse ano está tão impressionante do ponto de vista musical, que até aquelas bandas que, em muitos casos, não chamam muito a atenção, parecem empenhadas em entregar o seu melhor lançamento em anos. E é justamente esse o caso do TOPS e de seu quinto registro de inéditas Bury the Key. A capa, de tintas meio sombrias, pode até enganar os ouvintes desavisados, mas o que o grupo capitaneado por Jane Penny faz, aqui, é arredondar ainda mais o seu sophisti-pop etéreo, deixando-o ainda mais limpo, mais acessível. Claro que os trabalhos anteriores nunca foram aquele exemplar de som garageiro, mas aqui temos uma banda tão iluminada e tão dedicada a uma ambientação mais aconchegante, que singles como ICU2 não fariam feio em algum disco dos conterrâneos do The New Pornographers.
Em linhas gerais é até meio divertido ver canções de títulos potentes como Falling on My Sword - que parece saída de algum disco de love metal dos anos 80 -, fazendo de conta que há um peso a mais de guitarra, que nunca chega a se converter em um abalo roqueiro de fato. Até mesmo porque a natureza do TOPS sempre foram as canções pegajosas inundadas em sintetizadores primaveris, cheios de carisma e de guitarras arejadas, como no caso da saborosa Chlorine, um esforço eficaz sobre a sensação de solidão em meio aos bares da cidade(Pare de encher meu copo com tanto amor vazio). Já Mean Streak consegue soar açucarada e metafórica, mesmo que os versos sugiram a eventual dor decorrente de um amor não correspondido ou de uma relação mais tóxica (Por quê você fica com ela, quando sempre me quis?). Enfim, mais um disco que parece pequeno nas aparências. Mas que se agiganta a nova audição.
De: Ron Howard. Com Jude Law, Ana de Armas, Siney Sweeney, Daniel Brühl e Vanessa Kirby. Suspense / Aventura, EUA / Austrália, 2025, 129 minutos.
Eu preciso ser honesto com vocês: um filme como Éden (Eden)deve ter um amontoado de inconsistências, pouca coisa deve fazer sentido do ponto de vista histórico e há uma grande chance de que não haja qualquer pé na realidade. E, ainda assim, trata-se de uma experiência cinematográfica irresistível, divertida, tensa e sexy - capaz de nos deixar meio que hipnotizados pelas mais de duas horas de duração. Dirigida por Ron Howard - que tem uma carreira irregular, marcada por clássicos modernos oscarizáveis, como, Apollo 13 (1995) e Uma Mente Brilhante (2001) e por bombas atômicas como o recente Era Uma Vez Um Sonho (2020), a obra se inspira na história real do casal Friedrich Ritter (Jude Law) e Dore Strauch (Vanessa Kirby) que fogem da Alemanha no pós Primeira Guerra, para viver na pequena Floreana, um ponto isolado da Ilha de Galápagos.
A ideia era meio que abrir mão dos valores burgueses e capitalistas que pareciam estar corroendo o tecido social, para viver uma espécie de utopia de comunhão com a natureza, em uma nova vida bem distante do mundo "civilizado" e livre de qualquer amarra moderna. Na companhia apenas dos sons da mata e da praia do entorno, Ritter, que era médico, encontrava bastante tempo para se sentar diante de sua máquina de escrever, na intenção de compor uma série de manifestos que encontrariam espaço em jornais estadunidenses e europeus. E é mais ou menos aí que iniciam-se os problemas do casal, com outras pessoas buscando esse espaço idílico, como no caso dos agricultores Margret e Heinz Wittmer (Sidney Sweeney e Daniel Brühl), que chegam ao local com o filho tuberculoso Harry (Jonathan Tittel); além da excêntrica e hedonista baronesa Eloise Wernhorn (Ana de Armas), que chega com seus servos na intenção de construir um resort de luxo no local.
Uma rápida pesquisa na internet nos permitirá saber que todas essas pessoas, de fato, existiram e, muito provavelmente, coabitaram o local ao mesmo tempo. Mas o que Howard parece desejar fazer, aqui, é nos lembrar de certos ideais um tanto niilistas, baseados em figuras como Nietzche ("quem quiser permanecer limpo entre os homens, deve aprender a banhar-se em águas sujas") ou filósofos como Sartre ("o inferno são os outros"), que são citados de forma permanente e quase presunçosa por Ritter - como uma espécie de metáfora fragmentada do todo. Porque ao final e ao cabo, o casal não consegue deixar a civilização pra trás, sem que ela o encontre. E junto com ela, todos os preconceitos, mentiras, manipulações e antagonismos. Com uns se colocando contra os outros em disputas territoriais - por água, por comida, por poder (e até por prazer) -, o que nos faz lembrar as crianças perdidas do clássico literário O Senhor das Moscas (1954).
Quando os Wittmer chegam, Ritter não acredita que eles tenham força pra permanecer. Há muitos perigos ali e uma série de exigências de sobrevivência que parecem inadequadas para forasteiros. Mas eles ficam, persistem, constroem uma boa horta e se estabelecem com muito trabalho - a despeito dos olhos sempre tristes de Margret, que descobre estar grávida na ilha (o que renderá uma das sequências mais tensas do longa). Já a baronesa é absolutamente irresistível com o seu apelo à luxúria e consumo desenfreado, como uma pequena burguesa autoritária e cheia de personalidade, que antagoniza a todos ali, especialmente ao anunciar ser meio que a dona da ilha. Como um microcosmo da própria falência do capitalismo tardio, o filme consegue ser engraçado e reflexivo ao mesmo tempo, alternando momentos de diálogos hilários (a cena do almoço ou a da tentativa de sedução à um figurão de Hollywood são imperdíveis), com outros repletos de ressentimentos e de uma quase inevitável escalada da violência. Eu tenho a impressão de que se esse filme tivesse sido lançado na década de 90, ele seria sucesso absoluto. Talvez até sendo lembrado nas premiações. Hoje em dia, as pessoas parecem menos dispostas à papagaiadas escapistas. Tudo é levado a sério. Mas quem se aventurar sem grandes pretensões, deve se divertir.
De: Kyle Edward Ball. Com Dali Rose Treteault e Lucas Paul. Terror / Fantasia, Canadá, 2023, 100 minutos.
Assistir ao estranho Skinamarink: Canção de Ninar (Skinamarink) me fez lembrar um episódio ocorrido há uns dez anos, quando fui convidado pela organização de um festival de curta-metragens local para ser jurado da competição técnica. A tarefa, verdade seja dita, era bastante ingrata: assistir a uns trezentos curtas, em um período de poucos meses, fazendo anotações e selecionando aqueles que integrariam a lista final de indicados. Só que uma categoria me chamou a atenção a ponto de quase me deprimir: a dos filmes experimentais. Aliás, fiquei surpreso em perceber o apreço de jovens diretores, muitos deles claramente estreantes, em realizar obras herméticas, impenetráveis, repletas de imagens e de sons com ausência de qualquer lógica, funcionando apenas como um exercício de estilo, eventualmente provocador. E, invariavelmente, chato. Por sinal, acho que foi a existência dos curtas experimentais que me fez desistir de participar, novamente, de qualquer outra experiência semelhante a essa.
E, Skinamarink é, assim como aqueles curta-metragens presunçosos, pretensiosos, pernósticos, um filme experimental (corram para as montanhas). Mais ou menos como uma longa instalação de 100 minutos, criada pelo Radiohead na época do Kid A - mas sem qualquer personalidade para bancar isso - o filme do diretor Kyle Edward Ball, que estreou nesta semana na Mubi, é uma sequência infinita de pequenos takes de uma casa na penumbra, colados um no outro, com fotografia granulada, sombria, como se emulando alguma coisa no estilo fita VHS dos anos 80. Não sei muito bem como funcionaram as campanhas de marketing que, a bem da verdade, acho que nem existiram frente ao orçamento minúsculo de apenas 15 mil dólares, mas o fato é que o projeto viralizou no Tik Tok e alcançou uma boa base de adeptos daquele cinema de horror estilo found footage, como A Bruxa de Blair (1999) e Atividade Paranormal (2007).
Só que diferentemente desses, aqui não acontece muita coisa. O horror deve estar mais nos efeitos psicológicos da escuridão? No medo infantil do abandono? Nas incertezas diante do desconhecido? Há algo ali que vai mais adiante, chegando no limite entre realidade e fantasia? Vida e morte? Sim, quando o filme acaba são muitas perguntas e poucas respostas e, em geral, quem acompanha o Picanha sabe que eu não tenho nenhum problema com obras menos palatáveis, desde que eu não tenha a impressão de ter sido feito de bobo durante quase duas horas. Será que foi essa a impressão? Será que é esse o cinema do futuro e eu não tô sabendo? E se for, por Deus, tô fora! O resumo que se encontra por aí fala em duas crianças de seis e quatro anos - seus nomes são Kaylee (Dali Rose Treteault) e Kevin (Lucas Paul) - que acordam no meio da madrugada e percebem que o pai desapareceu de casa sem explicação.
Só que, assim, "pai sumiu de casa sem muita explicação" é algo que o espectador vai supor, se não tiver muita informação sobre, depois de um bom tempo de takes de brinquedos lego espalhados, de tetos de casa com suas lâmpadas, de cantos da sala ostensivamente escuros, de corredores isolados, de conversas espaçadas e monossilábicas. Enquanto tentam descobrir o que ocorreu, as crianças percebem que coisas estranhas começam a acontecer no ambiente: as portas e janelas desaparecem, objetos como cadeiras e brinquedos surgem no teto ou em outros locais impossíveis e uma voz do além lhes dá instruções. A madrugada avança enquanto elas assistem desenhos animados antigos, com trilhas sonoras assustadoras e fantasiosas em igual medida. Há na internet e nos fóruns online uma série de tentativas de explicar o que se vê - e que vão de medos embotados de infância, passando por traumas domésticos, até chegar em sonhos nostálgicos.
Claro que nada vai ser definitivo e cada um é cada um. Quem nunca se assombrou ao acordar de madrugada e descobriu que aquela forma humana que está no quanto do quarto, na penumbra, é, na verdade uma pilha de roupas em cima de uma cadeira? Ou ouviu barulhos e estalidos na casa que parecem vindos de uma dimensão paralela? Parece que a ideia de Ball foi meio que essa: convidar os seguidores do seu canal de Youtube a relatarem pesadelos noturnos, na tentativa de recriar as imagens desses sonhos. Que essas imagens sejam tão escuras, tão opacas e tão assustadoramente NULAS é meio que decepcionante. A crítica e o público tem sido divisivos entre a aclamação total e a completa abominação, e anda até meio difícil de encontrar um meio termo. Talvez tenha havido boas intenções que colidem com tempos tão urgentes, tão frenéticos. Mas admito a vocês que esse foi um dos filmes recentes em que mais peguei o celular para scrollar aleatoriamente o Insta, enquanto o tempo passava. Não consegui fazer o mergulho necessário talvez? Vocês que me digam.
De: Francesco Costabile. Com Barbara Ronchi, Francesco Gheghi, Francesco Di Leva e Marco Cicalese. Drama, Itália, 2025, 125 minutos.
Talvez uma das melhores histórias da atualidade sobre o quão difícil pode ser para uma mulher - para qualquer mulher -, escapar de um ciclo sem fim de violência doméstica. Sem rede de apoio. Com nenhuma garantia de segurança por parte do Estado. E à mercê de uma sociedade incapaz de fornecer o suporte necessário em casos de agressões não apenas físicas, mas psicológicas. Isso é o que assistimos no desalentador Família (Familia), drama dirigido por Francesco Costabile e que foi o enviado da Itália para o Oscar do ano que vem. Disponível na Reserva Imovision, a obra, inspirada em eventos reais que foram relatados em um livro escrito por Luigi Celeste, acompanha a via crúcis de Licia (Barbara Ronchi), que não apenas precisa lidar com o ex-marido criminoso que, recentemente, saiu da prisão - seu nome é Franco (Francesco Di Leva) -, como, mais adiante, ainda precisa confrontar o filho Gigi (Francesco Gheghi), que começa a se aproximar perigosamente de grupos supremacistas brancos, de extrema direita.
Claro que, aqui, temos uma história complexa de como famílias absolutamente disfuncionais podem formar o embrião que gerará adultos desajustados, como no caso de Gigi, que cresce à sombra de um pai que espanca a mãe à ponto de lhe quebrar os dentes da boca, sendo, na medida do possível, tranquilizado pelo irmão mais velho Alesso (Marco Cicalese). Nesse sentido, o filme de Costabile se converte em uma experiência complexa e de escolhas e soluções nunca óbvias. O mesmo valendo para os seus personagens, que nunca surgem em tela como figuras unidimensionais, capazes de ser apenas violentas ou bondosas em tempo integral. O próprio Franco, quando reaparece para os filhos em uma das sequências iniciais, enquanto esses batem bola despreocupadamente no pátio de casa, se empenha em compensar a ausência na vida dos meninos os levando ao parque de diversões e se comportando como um pai mais ou menos dentro do normal (a despeito de sua feição pouco amigável).
Sabendo que o ex violento está prestes a sair da prisão, Licia obtém uma medida protetiva, o que a faz trocar também as chaves da fechadura da casa - o que não impede a entrada de Franco, o que ele consegue com a ajuda dos próprios filhos, o que lhe oportunizará escancarar a sua face mais violenta. E, por mais que no aniversário de Gigi os integrantes se esforcem em tornar tudo "normal", um grupo de oficiais de justiça chega com uma ordem para que não apenas Franco fique distante dos filhos e da esposa. Mas a própria Licia seja apartada dos filhos, em um dos tantos instantes comoventes da produção. E que exemplificam a complexidade desses casos. Um salto temporal nos apresentará a um Gigi que já integra uma célula neonazista, ao passo que Alesso segue com uma vida de trabalho - o que não lhe retira a amargura. Os dois já voltaram a viver com a mãe em um modesto conjunto habitacional. Mas o drama ainda tá bem longe do fim. Especialmente após Gigi esfaquear um integrante de um grupo antifa em uma briga de rua e, pior de tudo, o pai reaparecer na vida de todos ali. O que sobrecarregará ainda mais o ambiente.
Em linhas gerais essa tragédia um tanto shakespereana, de pais e filhos em conflito, pode não ter muito espaço para redenção, já que não são poucos os instantes sombrios. Gigi até deixa de lado os ideais neonazis depois de ser preso - e de se apaixonar por Giulia (Tecla Insolia), que abomina essa vida dupla em que ele se encontra. Em certo ponto, Licia confronta o filho, ao mencionar que ele lhe "faz lembrar alguém", sem nem saber que Gigi tem encontrado Franco às escondidas, porque é justamente o pai quem primeiro vai lhe visitar na cadeia (após anos preso por assalto). As idas e vindas podem ser preenchidas por cenas cheias de simbolismos, como aquela em que Gigi e Giulia entram no túnel do terror de um parque, mas o que fica é a alternância e os altos e baixos em que, de novo, as personalidades nunca são limitadas. De qualquer forma e a despeito disso, muitas coisas se sobressaem aqui. Entre elas a dificuldade de expor às autoridades os casos de violência. Que se perpetuam de forma inevitável.
Vamos combinar que, até pra fazer música bobinha, é preciso ter personalidade. Sim, porque se relacionamentos falhos, incertezas românticas ou paixões arrependidas costumam ser a matéria-prima ideal para uma banda de power pop festivo ainda na flor da idade, não tem porque ela ser apenas óbvia. Afinal, a gente pode até já ter ouvido essa guitarrinha acelerada antes, a bateria urgente e o estilo vocal meio Sleater Kinney tomando uma ducha de doçura, mas em 2025 ainda dá pra ser descolado, divertido e levemente anárquico dentro do estilo - como comprovam as meninas canadenses do The Beaches que, recentemente, lançaram No Hard Feelings, seu terceiro registro de inéditas. Um álbum cheio de canções de letras irônicas e sem rodeios, e que tem no vocal sensual mas potente, de Jordan Miller, um dos pontos altos.
Talvez esse seja mais um disco que não receberá a devida atenção em um ano tão espetacular como 2025. Mas quem se aventurar, dificilmente não abrirá um sorriso nostálgico frente a músicas envolventes e cheias de refrãos ganchudos, como, Fine, Let's Get Married, Touch Myself ou Can I Call You In the Morning? - está última uma peça mal humorada, mas engraçadíssima, a respeito de uma relação tóxica em que os sentimentos de amor e ódio parecem andar lado a lado (Eu gostava da sua antiga banda, mas não das novas músicas / Devemos terminar então?). O expediente de confissões, frustrações e de medo de ter sido excessivamente honesto sobre algo, se repete na deliciosamente sarcástica Did I Say Too Much?, sobre a luta interna que envolve se apaixonar por alguém do mesmo sexo, que deseja um relacionamento aberto. "É sobre a intensidade de compartilhar seus sentimentos mais profundos, sobre algo que é construído para não durar", afirmou em entrevista. Vale a atenção!
De: Martín Rejtman. Com Esteban Bigliardi, Manuela Oyarzun e Camila Hirane. Drama / Comédia, Argentina / Chile / Portugal, 2023, 95 minutos.
Era pra ser curioso, engraçado, excêntrico, diferente, mas foi apenas chato mesmo. Ou vai ver fui eu que não consegui embarcar - e, devo admitir que, por vezes, me dá um pouco de ranço esse cinema metido à alternativo que soa apenas presunçoso. O auge do auge nesse 2025 nem era tão indie assim - o horroroso Megalópolis (2025) -, mas tem umas outras joias nessa série B do catálogo da Mubi, que exigem uma boa dose de boa vontade do fã de cinema. E é exatamente esse o caso do recente argentino A Prática (La Práctica), do diretor Martín Rejtman. Espécie de pastiche cômico que tenta soar como um Ari Kaurismäki latino, esse é o tipo de projeto que sai do nada pra lugar algum, enquanto tenta fazer algum tipo de exame aleatório dos sofrimentos, frustrações e dores da classe média, hétero e branca. E que, ao cabo, também luta pra sobreviver.
No centro da narrativa está o professor de ioga Gustavo (Esteban Bigliardi), um sujeito de meia-idade que está se separando da esposa Vanesa (Manuela Oyarzun), que também é instrutora da mesma prática. Enquanto tentam em vão uma terapia de casal tardia para um casamento que não tem mais salvação, Gustavo busca se adaptar à nova vida depois de sair do apartamento da ex, indo morar com o ex-cunhado fumante inveterado, que convive com a esposa meio maluca. Havia uma viagem para a Índia agendada, que o casal desmarca, ao mesmo tempo em que Gustavo vai para uma espécie de retiro espiritual (e, vamos combinar, nada mais burguesia nem tão emergente do que isso). É lá naquele local meio estranho que o protagonista descobrirá uma severa lesão no menisco, que quase lhe impedirá de trabalhar.
E, aqui, a meu ver inicia essa tentativa meio desesperada do diretor em converter qualquer coisa em uma alegoria para as fraturas sociais daqueles que acompanhamos. Uma separação exige que a pessoa se reerga com suas próprias pernas, então que tal colocar uma inflamação no pé como uma metáfora pra isso? Mas há outros momentos meio constrangedores, como no caso do começo da película, instante em que um tremor leve de terra acontece. Uma aluna se lesiona na cabeça e perde a memória - aliás, aluna que parece preocupada com os excessos do instrutor em relação a ela. Assédio? Vai saber. Fica tudo mais ou menos no ar, exatamente como uma pedra flutuante completamente aleatória que aparece como um Deus ex-machina quase ao final, tentando solucionar algo que, ao cabo, é meio que insolúvel. Ver aquelas pessoas apenas aborrece. E nada mais.
Por sinal, o próprio fato de o sujeito ser um instrutor de ioga - um tipo de prática com rígido código de conduta, com exigências físicas e mentais -, aparece como uma desculpa para comentários sociais estúpidos a respeito de culturas regulamentadas. Aliás, é verdade que professores de ioga não comem alho? Ah, Gustavo também é vegetariano. E tem uma mãe controladora. O que talvez ajudasse a compreender alguns comportamentos, se lá pelas tantas a gente não tivesse meio que de saco cheio daquelas pessoas vazias, que lavam roupas como um processo de purificação. E que perambulam pra lá e pra cá sem muita lógica, em atos entorpecidos e vazios, que culminam em diálogos ocos e que parecem retirados da pior peça de teatro juvenil da história. O surgimento de novos personagens, como o jovem Matias (Giordano Rossi), que é acusado de furto por Gustavo, ou mesmo a ex-aluna e enfermeira Laura (Camila Hirane) acrescentam ZERO em termos de interesse. Em uma experiência que termina oca como a vida simplória e ordinária de todos ali.
Paixão, fé, revolta política, falta de dinheiro, guerra, consumismo, lavagem cerebral. Vamos combinar que poucos artistas da atualidade mesclam tão bem as experiências pessoais - que envolvem dificuldades financeiras, incertezas sobre o futuro e até a análise do poder transformador da arte -, com questões mais amplas sobre as falhas do capitalismo tardio e da sobrecarga vivida por qualquer minoria que insista, meramente, em sobreviver nos Estados Unidos, como o Nourished by Time. Com um elogiado disco de estreia na bagagem, Erotic Probiotic 2 (2023), a banda capitaneada por Marcus Brown agora retorna com o ótimo The Passionate Ones, onde novamente une R&B experimental, bedroom pop e neo soul, em um projeto cheio de vigor, com seu vocal espectral se mesclando à sintetizadores sedutores, pianos levemente caóticos e cordas estranhas.
Em linhas gerais é um tipo de som até meio difícil de definir. A um amigo, numa tentativa meio falha, comentei que a coisa toda lembrava uma junção do TV on the Radio com o Jamie XX - especialmente no componente da estranheza, com melodias que olham para o futuro, mas também honram o passado, como no caso da sofisticada 9 2 5, que tem um quê meio Chaka Khan, com uma letra cheia de personalidade que se inspira na vida real de James, que teve outros empregos, até "acontecer" como artista (Tentando driblar o sistema / [...] Trabalhando em restaurantes de dia / Escrevendo canções de amor de noite). O expediente da música de protesto, mas que também serve para dançar e amar (como resumiu o The Guardian), se repete em outros instantes, como no single Baby Baby um rap ágil com coralzinho gospel e um quezinho de disco music, que traz letra sobre desejo de fama e bombardeio na Palestina. É único, brilhoso, onírico e sensual em igual medida. Não há como ouvir a balada Tossed Away, ou a magnética It's Time (a melhor) e ficar alheio. É artista cheio de alma que veio pra ficar.
Apenas por curiosidade resolvi abrir alguns fóruns online pra ver o que os ouvintes estavam falando sobre The Life of a Showgirl, o décimo segundo disco da Taylor Swift e confesso a vocês que fiquei impactado em como as pessoas levam a sério o trabalho da loirinha! De comentários maldosos sobre ela estar sendo uma paródia de si própria, passando por discursos moralistas a respeito das letras tardiamente safadas da artista e críticas a um certo cansaço da imagem, até chegar ao auge de alguém dizer que ela só faz música pra atender o seu público, não seguindo seu "coração", aparentemente tudo está em julgamento. E nada está em seu lugar. Como o fã de novela que se queixa dos seguidos furos de roteiro, ou o consumidor de fast food que não entende como um hambúrguer tão famoso pode ser tão pobre do ponto de vista nutricional, espera-se que a Taylor, aparentemente, seja como uma espécie de baluarte da salvação da música no ano de 2025. Que ela dê um novo direcionamento para o seu pop de violão. Para que ela avance ainda mais pra dentro do matagal e da fogueira depois dos excelentes folklore e evermore (2020). E fuja do óbvio sem nunca mais olhar pra trás.
Mas, vamos combinar que talvez a Taylor só esteja feliz, convertendo essa alegria de um novo amor - alguém que a trata com doçura sem arroubos irônicos (Honey), que tem uma rola mágica de uns 20 centímetros (Wood) -, em um disco cheio de petardos brilhosos pra cantar junto, como as ótimas Opalite e The Fate of Ophelia (esta última com citações à Shakespeare, pra quem tá sedento por algum tipo de profundidade). Não é todo o dia que a gente precisa de uma dissertação de Mestrado musical - e o que não faltam são bandas diferentonas nessa seara. E o que o que me deixou surpreso, de fato, foi que a cantora chegou a anunciar que estava fazendo uma espécie de retorno aos tempos de Red (2012) e de 1989 (2014), que é o que acontece aqui. Ou seja, tudo estava alinhado! Sim, há acenos sobre o drama da mulher branca e famosa na era do cancelamento (CANCELLED!), a respeito da exploração na indústria da música (Father Figure, que tem uma interpolação de George Michael em uma canção de mesmo nome), além de uma diss track desajeitada, que parece direcionada à Charli XCX (Actually Romantic). Nada mais adequado para a hora do treino ou para encarar uma louça em cima da pia. E vida que segue!
De: Peter Weir. Com Anne-Louise Lambert, Margaret Nelson, Rachel Roberts, Helen Morse e Jacki Weaver. Drama / Suspense, Austrália, 1975, 115 minutos.
Uma montanha enevoada, um clima de sonho febril e bucólico, os banhos de flores, as roupas rendadas, a trilha sonora onírica e delicada, os letreiros góticos - absolutamente tudo, no início do clássico hippiePiquenique na Montanha Misteriosa (Picnic at Hanging Rock), sugere um ambiente romântico, mas misterioso, sensível, porém enigmático. Ao cabo, a obra conduzida pelo versátil Peter Weir (de O Show de Truman, 1998) e que recém completou 50 anos de seu lançamento, pode ser uma experiência excessivamente contemplativa para alguns paladares. Especialmente por não adotar, como seria esperado em uma produção dos anos 70, o esquema de início, meio e fim desenhados de uma forma mais tradicional, ou com algum tipo de solução mais satisfatória. Só que esse é um filme muito mais sobre a atmosfera criada. A respeito de sensações evocadas. E sobre temas que ficam uma camada abaixo - e que vão do amadurecimento, passando pelas descobertas sexuais, até chegar às diferenças sociais ou mesmo o medo do desconhecido.
Em um primeiro momento, a produção estabelece diálogo com suspenses típicos de gênero, quando três alunas e uma professora simplesmente desaparecem, sem muitas explicações, em meio a um piquenique junto às opressivas formações geológicas de Hanging Rock, em Victoria, na Austrália. É o Dia dos Namorados no ano de 1900 e as jovens estudantes de um internato para meninas estão animadas com a possibilidade de saírem à campo para celebrar a data. A severa diretora Mrs. Appleyard (Rachel Roberts) alerta para as situações de risco: os rochedos podem ser perigosos, há chance de haver cobras ou formigas e a exploração está proibida. A ideia é que elas elaborem uma redação como tema de casa e o clima é amistoso. Menos para uma garota de nome Sara (Margaret Nelson), que é obrigada a ficar no educandário - e, mais adiante, compreenderemos os motivos, dado o conservadorismo reinante e um certo estranhamento no que diz respeito ao afeto excessivo que Sara dispensa à outra jovem, no caso Miranda (Anne-Louise Lambert).
Aliás, aqui está uma das grandes habilidades do filme - inspirado em obra da romancista Joan Lindsay -, que é apresentar uma série de subtextos de forma sutil, sem apelar para obviedades ou convenções. O suposto lesbianismo de Sara nunca vai para além do campo da sugestão - ela é impedida de ir ao piquenique por ser uma novata recém-chegada de outro orfanato e que teria sido apartada de seu irmão. Com a opressão à ela se ampliando conforme ela apresenta uma série de dificuldades financeiras, ficando em "dívida" com a escola. Miranda é uma das jovens que desaparecem em Hanging Rock, ao lado de Marion (Jane Vallis) e Irma (Karen Robson). O sumiço se dá após um misterioso evento que faz os relógios pararem (às 12h em ponto), ao mesmo tempo em que os professores aceitam que as jovens saiam do seu raio de ação, sob a desculpa de investigarem melhor o local. No caminho, o trio que é acompanhado ainda por Edith (Christine Schuler) - que é a única que consegue fugir -, é sorrateiramente observado pelos jovens Michael (Dominic Guard) e Albert (John Jarratt).
Quando Edith retorna desesperada ao acampamento, após um transe que leva Miranda, Marion e Irma para uma espécie de fenda, as explicações são desencontradas. Uma professora, que teria tentado auxiliar nas buscas, também desaparece. A força tarefa que faz as buscas não tem muitas informações. Edith alega ter visto uma nuvem vermelha. O quarteto teria desmaiado junto às rochas antes do ocorrido. Pessoas aleatórias teriam sido vistas em meio às frestas estreitas, à distância, como se não tivessem uma "função" bem definida. "Na Inglaterra não se permite que jovens passeiem assim sozinhas", lembra Michael, fazendo um aceno ao patriarcalismo da época, que se une a um apelo à violência como forma de dominação. Nada fica muito claro e também a situação não se resolve, quando Irma é localizada desacordada. A sensação é de alarmismo e de colapso, com especulações sobre estupro e assassinato e outros crimes que podem abalar a reputação da escola - com a tragédia se ampliando perto do desfecho, com o mistério permanecendo insolúvel. O que não reduz o impacto dessa joia cult, que integra uma série de listas de melhores, inspirando, anos mais tarde, uma série de outros projetos, como As Virgens Suicidas (2000), de Sofia Coppola.
Vamos combinar que, quando o assunto é a música alternativa, existem algumas bandas que são apostas certeiras. Daquelas que praticamente não têm como dar errado. E esse é justamente o caso dos ingleses do Wolf Alice que, depois de lançarem o melhor disco internacional de 2021, o essencial Blue Weekend, retornam com o ótimo The Clearing, o quarto trabalho de estúdio. Mais maduros e, consequentemente mais preocupados com questões que dizem respeito aos trinta mais, o grupo capitaneado por Ellie Rowsell, nunca soou tão limpo. É como se o seu soft rock psicodélico, antes diluído em algum tipo de plasma que o deixava mais garageiro, mais sujo e até mais sonhador, agora tivesse passado por um polimento. Reflexo da chegada em uma nova gravadora (um braço da Sony), que tentará vendê-los como os "novos" salvadores do pop britânico? Talvez. Mas, também e provavelmente, uma vontade pessoal de se aproximar de um público mais amplo.
Um bom exemplo desse expediente pode ser percebido na pegajosa Just Two Girls, que não apenas tem aquela pegada mais setentista e estrutura clássica de estrofe e refrão, como ainda possui uma letra comovente sobre amizade entre duas mulheres, ecoando sentimentos de vulnerabilidade, julgamentos e inseguranças (Apenas duas garotas / Como duas crianças no parque / Aqui está o palco, você é a estrela). Já a ótima baladinha Play It Out aborda às pressões relacionadas à maternidade e sobre como as jovens mulheres só parecem ser validadas enquanto forem jovens ou férteis. Talvez os mais apressados possam se sentir à vontade pra dizer que não há nenhuma canção tão potente como Don't Delete the Kisses ou Lipstick on the Glass nesse álbum. Mas esse é um trabalho que cresce a cada nova audição. O que faz com que a cada dia canções diferentes - como Thorns, Bloom Baby Bloom, Bread Butter Tea Sugar ou White Horses - permaneçam conosco.
De: Bernhard Wenger. Com Albrecht Schuch, Julia Franz Richter e Theresa Frostad Eggesbø. Comédia / Drama, Áustria / Alemanha, 2024, 102 minutos.
Em um dos filmes mais engraçados de Woody Allen, o diretor e ator vive Leonard Zelig, um sujeito meio sem graça que sofre de uma curiosa condição psicológica: a de ser capaz de adequar não apenas a sua personalidade, mas também a sua aparência, para que esta fique ajustada ao grupo em que está convivendo. Se está ao lado de médicos ingleses afetados, logo ele estará comentando os avanços da ciência com sotaque característico. Se estiver próximo a um coletivo de jazz, ele, como um camaleão humano, modificará a cor da pele, tornando-se um habilidoso saxofonista. A necessidade de se ajustar às convenções era o que estava no centro de crítica de Zelig (1983), um mocumentário absurdamente hilário e que, hoje, anda meio esquecido na filmografia de Allen. O que nos leva à O Pavão (Pfau: Bin Ich Echt?) que, em alguma medida, repete as ideias da obra do nova iorquino em suas discussões sobre personalidade (ou ausência de uma), quebra de padrões sociais e outros temas relacionados.
Só que, como não poderia deixar de ser quando o assunto é o cinema alternativo europeu, aqui temos uma espécie de episódio de Black Mirror, feito para ser exibido no Festival de Locarno. Na trama do filme de Bernhard Wenger - o enviado da Áustria para o Oscar 2026 -, Matthias (Albrecht Schuch) é uma espécie de mestre na personificação de papeis. Aliás, a ponto de tornar essa habilidade a sua profissão. Ele pode até parecer meio tímido ou um tanto normie, mas como o dedicado funcionário de uma empresa chamada My Companion, ele pode se converter em qualquer pessoa, encarnando um papel que esteja de acordo com o desejo do cliente. Alguém para ser companhia durante um concerto musical? Na mão. Um namorado gay, que ajudará o parceiro na compra de um apartamento que só é vendido para casais? Não seja por isso. Um piloto de avião que surge como o pai improvisado de uma criança, em sala de aula? Oras, vamos lá.
Como um Zelig dos tempos modernos, Matthias vai pra lá e para cá com seu ar blasé, solicitando aos clientes uma avaliação positiva no site, a cada serviço concluído, para que os negócios sigam satisfatórios. Só que a vida real não é feita de personagens. Quer dizer, pode até ser, em partes, mas sempre haverá o dia em que a máscara pode cair. Exatamente como dizia o Lulu Santos, na ótima Tudo Igual (Não leve o personagem pra cama / Pode acabar sendo fatal). E o caso é que a namorada de Matthias, Sophia (Julia Franz Richter), já tá de saco cheio da apatia do companheiro. Incapaz de tomar qualquer decisão, de mostrar qualquer tipo de autenticidade. "Você simplesmente não parece mais real", reclama ela na discussão central da narrativa, enquanto ele assiste a um enorme cachorro recém adotado por ela, comer ração diretamente do sofá. Aliás, o caso é que até o drama da DR soa fake, como se as lágrimas tivessem de ser aplicadas artificialmente.
Enquanto vive seu próprio drama pessoal, Matthias se prepara para dois novos papeis. Em um deles, auxilia uma idosa - seu nome é Vera (Maria Hofstätter) - a ser capaz de argumentar com o marido reinento. O que ocorre em sessões periódicas em um apartamento improvisado no centro. Já outro contratante é um senhor que organiza uma festa de 60 anos, com Matthias encarnando o filho do sujeito. O homem quer que ele capriche no discurso - algo emotivo, convincente -, para que ele possa se cacifar para a presidência de uma associação de ricaços que ele representa. Enigmático, estranho e meio delirante, o filme aposta em situações que vão no limite do deboche à burguesia pequena, sendo impossível não encontrar eco na obra de diretores como Ruben Östlund (especialmente a sequência final, com sua referência à The Square: A Arte da Discórdia, 2017) e Yorgos Lanthimos, com sua crítica lúcida ao vazio da experiência das elites econômicas abastadas. Contexto que é reforçado pelo exótico retiro espiritual feito pelo protagonista. Tá na Mubi e vale prestar atenção.
De: Paul Thomas Anderson. Leonardo DiCaprio, Teyana Taylor, Sean Penn, Chase Infiniti e Benicio Del Toro. Ação / Policial / Comédia / Drama, EUA, 2025, 161 minutos.
Existe uma frase atribuída à Che Guevara que diz que "a revolução se faz através do homem, mas o homem tem de forjar, dia a dia, o seu espírito revolucionário". Em alguma medida e, em uma interpretação bastante livre, é possível afirmar que tal sentença resume bem o sentimento vivido por Pat Calhoun (Leonardo DiCaprio), personagem central de Uma Batalha Após a Outra (One Battle After Another), que está em cartaz nas cinemas do País. Ao cabo, a obra dirigida por PaulThomasAnderson - um dos favoritos da casa - é uma experiência larga, grandiosa, que alterna momentos frenéticos de perseguição e de fugas espetaculares (tanto a pé, como em carros em movimento), com instantes um tanto intimistas, domésticos e reflexivos. Não apenas sobre os tempos em que vivemos - de ascensão de uma extrema direita a cada dia mais radical -, mas também da persistência quase romântica em não deixar os ideais revolucionários esmorecerem.
Porque em geral é muito cômodo aceitar o mundo em que vivemos. Com Bolsonaro, Trump, Netanyahu, supremacismo branco, nazismo da pós-modernidade, xenofobia, genocídios e instabilidade social generalizada. Mas como é possível acordar todas as manhãs, recolhendo todo o ânimo restante para que o ideal de um mundo melhor para as gerações futuras se perpetue? Como ir para além da paixão sanguínea e ideológica que move os movimentos de esquerda (ou progressistas) que lutam por justiça social e um maior equilíbrio entre quem está acima e abaixo da pirâmide? No primeiro terço da produção é meio que impossível não se comover com uma espécie de deleite amorosamente revolucionário. Aquela coisa de tesão e fúria, de sexo e bomba, de luta panfletária por liberdades em meio a tiros, gozo e tentativas espetaculares de driblar as forças militares que se instauram nas entranhas do poder. E que acham que podem determinar o futuro do cidadão comum, levando-se em conta sua raça, gênero ou cor da pele.
Pat e a parceira de crimes (e de cama) Perfídia Berverly Hills (a ótima Teyana Taylor) - como se fossem uma espécie de Bonnie and Clyde das trincheiras revolucionárias -, integram o coletivo French 75 que realiza, por baixo dos panos, uma série de ações que envolvem explosões com bombas, resgates mirabolantes de presos políticos, e ataques a rede elétrica, que visam a desestabilizar o governo tirânico e autoritário de extrema direita em vigor. E que tem no comandante Steven Lockjaw (Sean Penn, como se fosse um General Heleno do universo nem tão alternativo), o seu principal rosto. Aliás, rosto asqueroso como costuma ser o desses neofascistas que compensam algum tipo de ausência, com muito grito, muita arma empunhada, um tanto de cara feia e muita raiva de qualquer minoria. Negros, gays, imigrantes, quem quer que seja. E é por isso que ele fica absolutamente exasperado quando ele é humilhado por Perfídia, durante uma ação do grupo. Para mais tarde capturá-la, obrigando-a a fazer sexo com ele.
Perfídia, mais adiante, dá à luz à filha Charlene (Chase Infiniti), mas, incapaz de seguir uma vidinha de "bela, recatada e do lar", ela foge de casa para seguir os ideais da revolução, deixando a cargo de Pat a criação da pequena. Só que, em uma das ações do French 75 as coisas saem errado, Perfídia é presa, indo parar em uma espécie de Programa de Proteção de Testemunhas, que é conduzido pelo próprio Lockjaw, com seus trejeitos e tiques nervosos absurdamente irritantes. Um conjunto de situações que obrigará Pat e Charlene a fugirem, enquanto Perfídia também consegue escapar do seu asilo forçado - no caso, para o México. Um salto de 16 anos no tempo mostrará pai e filha vivendo agora com outra identidade (seus novos nomes são Bob e Willa), tentando tocar a vida em uma cidade santuário isolada. E, claro, como não poderia deixar de ser, a caçada em si ainda não terminou, especialmente após Lockjaw se tornar integrante de luxo de um grupo supremacista - o que faz com que Bob / Pat se torne a cada dia mais paranoico. Tendo no vício em drogas uma espécie de válvula de escape.
Com uma trilha sonora envolvente, de cordas e pianos cortantes que sobem e diminuem, mas que permanecem meio que o tempo todo - cortesia de Jonny Greenwood, do Radiohead -, e uma edição ágil, mas nunca confusa, Uma Batalha Após a Outra é uma aventura política quente, inspirada em um conto de Thomas Pynchon, e que dialoga, inevitavelmente, com o atual contexto político (ainda que Vineland, o texto de Pynchon, tenha sido escrito na esteira do governo do republicano Ronald Reagan). Por vezes exagerado, em outros momentos engraçado, mas o tempo todo hipnótico, esse é o tipo de produção que, as pessoas elogiam dizendo que "nem se vê às 2h40 passarem". Sim, isso pode ser um mérito, especialmente em uma obra bem costurada, ágil e que mantém a atenção do público. Claro que, no terço final, quando a perseguição parece não ter mais fim - depois da entrada em cena do professor de caratê de Willa, Sergio (Benicio Del Toro) -, a coisa pode dar uma certa cansada. Ainda mais quando meio que já compreendemos a mensagem que fica, no que diz respeito ao combate permanente de regimes autoritários. E da importância de nunca desmobilizar.
De: Fernando Coimbra. Com Leandra Lea, Irandhir Santos, Stepan Nercessian, Thiago Thomé e Irene Ravache. Drama / Policial, Brasil, 2024, 123 minutos.
Quem acompanha a carreira do diretor Fernando Coimbra sabe de sua habilidade em construir aquele drama policialesco e essencialmente urbano - repleto de personagens de caráter duvidoso, que navegam em um cenário de criminalidade reinante. Foi assim, por exemplo, com o ótimo O Lobo Atrás da Porta (2013) - que lhe credenciaria para a direção de alguns episódios da série Narcos, da Netflix -, é assim com o recente Os Enforcados, que passou meio que batido pelos cinemas e, agora, chega para aluguel nas plataformas de streaming. A trama gira em torno de um casal de trambiqueiros - Regina (Leandra Leal) e Valério (Irandhir Santos) -, que comercializa máquinas de caça níquel clandestinas na periferia do Rio de Janeiro. Só que, a despeito da reforma que eles estão executando em sua voluptuosa casa, o caso é que eles estão falidos. Endividados. Em crise. O que, ao menos em partes, não altera o sexo fetichista da dupla.
A oportunidade de ouro para quem tá meio que ligando o foda-se surge quando o tio de Valério, um certo Linduarte (Stepan Nercessian), uma figura influentíssima no jogo do bicho, anuncia que vai deixar os negócios - o que representa uma tentativa de recomeço para Valério, que é influenciado por Regina que, mais adiante, perceberemos ter uma ambição atroz. Sentimento ampliado por um outro trambique. Esse perpetrado pela mãe de Regina, Helena (Irene Ravache) - uma charlatã leitora de cartas de tarô, que anuncia a filha que a lua em Saturno (ou algo que o valha) configurará uma virada financeira. Nem tudo será tão simples porque a ideia de Valério era vender a sua parte dos negócios para o tio. Só que ele descobre que o sujeito anda enrolado com políticos, com milícia e gente grande do local. "Todo mundo quer a morte desse cara e você nunca será o suspeito, já que é o sobrinho", insinua Regina. E, bom, é mais ou menos por aí que se inicia uma trilha de sangue, de violência, de chantagens e de perseguições.
O caso é que Regina e Valério não apenas matam o próprio tio para assumir seus negócios, como ainda o escondem em meio as paredes da casa em reforma - uma coisa estilo Festim Diabólico (1948), mas talvez com menos charme blasé. Enquanto as obras avançam, os golpes (e paranoias) também se ampliam. Há outros homens interessados em saber do paradeiro de Linduarte que, eles dão a entender, teria algo a ver com a morte do próprio pai de Valério, uma outra figura controversa e ligada ao crime. Há uma escola de samba no meio dos negócios - e que faz aquele aceno ao estelionato -, além de uma empresa de fachada para a lavagem de dinheiro. Só que o casal central descobrirá, a duras penas, que o tio também era um falido de marca maior, estando endividado até o pescoço. Com gente graúda. O que levará a uma investigação da Polícia Federal e uma tentativa desesperada de sobreviver em meio a tudo.
Sim, essa resenha meio mal construída pode dar a entender que é tudo meio sem graça nessa perseguição de gato e rato e em tentativas aleatórias de um bando de alpinistas sociais ascenderem a qualquer custo. Mas aqui temos não apenas o resumo alegórico desse Brasil atual do jogo do Tigrinho, e de pessoas em um desejo nem tão secreto de enriquecerem percorrendo menor caminho possível, como tudo é feito com um senso de humor meio Marçal Aquino, meio Guy Ritchie (na melhor fase) - se é que isso é um elogio. Há uma tentativa de graça que não fica só na violência estilizada pela violência. Por exemplo, quando o tio morre o sangue se espalha até pelo teto, se bobear. O cachorro sapateia por cima da gosma vermelha. O que exige de Regina um esforço a mais no alvejante. Há outros acenos sobre questões sociais e políticas, como no momento em que Valério afirma, como "cidadão de bem que paga impostos", ser a favor de um combate mais efetivo do crime organizado. Como se ele não fizesse parte daquele contexto. Enfim, nada mais Brasil do Brasil. E méritos para Coimbra, que é capaz de levar tudo isso pra tela apostando na excentricidade de tudo, sem pedantismo ou academicismo excessivo.
De: Aga Woszczynska. Com Agnieszka Zulewska, Dobromir Dymecki, Ibrahim Keshk e Marcello Romolo. Drama / Suspense, Itália / República Checa, 2022, 113 minutos.
Na primeira cena de Terra Silenciosa (Cicha Ziemia), um sujeito sofre para abrir uma persiana meio emperrada, que faz um barulho estridente. Uma mulher, que parece ser sua esposa, coloca alguns produtos em uma geladeira, enquanto um zumbido agudo surge incômodo. No instante seguinte, o casal examina um ventilador que não funciona, carece de reparos. A piscina do local está quebrada. Não demora para que percebamos que o casal polonês Anna (Agnieszka Zulewska) e Adam (Dobromir Dymecki) está de férias, em uma ilha paradisíaca da Itália. O sol brilha, a praia luminosa convida. É tudo alvo e caloroso, a dupla parece estar conectada - ao menos é o que indicam as aparências. Mas há um ruído (alegórico ou não), um tipo de desconforto que parece pronto pra emergir não se sabe bem de onde, e que marca essa ótima estreia da diretora Aga Woszczynska, que finalmente chega à Reserva Imovision.
Tal qual o burguês histriônico que reclama de seu quarto de hotel na primeira temporada da sempre imperdível White Lotus (2021), aqui o casal se queixa, de forma mais comedida, por óbvio, com o proprietário da pousada a respeito da inoperância da piscina. "Vocês são meus primeiros clientes da temporada", argumenta o carismático Fabio (Marcelo Romollo), que também é o proprietário da trattoria local. A proposta de compensar os clientes com um lauto prato de massas não convence, o que faz com que o homem garanta: em dois dias a piscina estará consertada. Após uma noite de sexo quente, a tranquilidade de Anna e Adam é quebrada logo cedo da manhã do dia seguinte, quando entra em cena o jovem árabe Rahim (Ibrahim Keshk) - um sujeito de corpo esguio e de pele morena (e suada), que, em um cenário de objetificação, talvez não fizesse feio em um vídeo pornô mais teatralizado -, que, de britadeira em punho, trabalha no reparo.
Branco e meio sem graça - inclusive do ponto de vista do senso de humor -, Adam fica claramente desconfortável com a situação. O casal deseja a piscina mas parece não gostar da presença do empregado - que surge ali como a figura "invasiva", estranha, que quebra essa lógica de rotina, de tranquilidade. [SPOILERS A PARTIR DAQUI] Há um incômodo no todo, que só piora quando Rahim sofre um grave acidente - ele tropeça e cai na piscina que, justamente, está sendo enchida. Anna e Adam presenciam o fato. Mas fazem pouco para socorrer o jovem empregado. Que bate a cabeça nos azulejos e... morre. Afogado. Para a polícia local uma ocorrência trágica. Mas talvez rotineira. As câmeras de segurança evidenciam que pode ter havido negligência por parte de Adam, que optou por telefonar pedindo socorro, ao invés de correr para acudir o ferido. "Os turistas são bem-vindos em nossa cidade", comenta o delegado, diante dos depoimentos cheios de ambiguidades.
E aqui talvez esteja a grande sacada dessa produção silenciosa e cheia de sutilezas, que aposta em alegorias e metáforas para discutir xenofobia, crises envolvendo imigrantes, preconceitos de classe e privilégios burgueses. Ninguém ali parece muito disposto a apontar dedos para Anna e Adam. "Ele nem estava legal aqui", argumenta um casal de amigos - um professor de mergulho e sua esposa -, com quem eles fazem amizade no transcorrer da estada. Só que há uma coisa chamada consciência. E tal qual Raskólnikov, o protagonista de Crime e Castigo, de Dostoiévski, o que atormentará inabalavelmente a existência do casal será a culpa, o conflito moral e a crise ética. Como seguir em frente sabendo que, talvez, uma morte pudesse ter sido evitada? Mais: de alguém que integra uma minoria, já tantas vezes vulnerável nesse sistema capitalista em que vivemos? O desfecho simbólico é a cereja do bolo nessa obra que parte do microcosmo, para uma análise minuciosa do todo. Vale muito.