quinta-feira, 8 de maio de 2025

Tesouros Cinéfilos - Entre os Muros da Escola (Entre les Murs)

De: Laurent Cantet. Com François Bégaudeau, Jean-Michel Simonet, Boubacar Touré e Rachel Régulier. Drama, França, 2008, 128 minutos.

Vamos combinar: quem assiste Entre os Muros da Escola (Entre les Murs) normalmente se surpreende com o caráter naturalista da obra. Esse é um filme de sala de aula. Aliás, de muita sala de aula. Com professor e alunos dialogando, gritando, colidindo, rindo se confrontando. Só que, aqui, diferentemente do que ocorre no subgênero das produções escolares - em que a encenação toda pode soar meio fake -, temos a impressão de a câmera ter sido apenas ligada no ambiente de uma escola de verdade, com os estudantes tendo sido estimulados a apenas agirem como se estivessem, de fato, em aula. Adolescentes se provocando, olhando para trás o tempo todo, tirando sarro uns dos outros, gaitando. Ou mesmo deitados com ar cansado em cima da carteira. Desgostosos com algo ou apenas insatisfeitos porque essa etapa da vida é um saco mesmo e a gente ainda tem de prestar atenção no que o professor diz. É tudo tão, mas tão realista - e ao mesmo tempo tão magnético, tão envolvente, tão vivo -, que não dá pra sair ileso.

Só que essa representação tão fiel à realidade tem um por quê, que é o fato de o professor François (François Bégaudeau) ter sido não apenas o escritor do livro que baseia a obra dirigida por Laurent Cantet, mas também ser corroteirista. Ou seja, três em um. Que isso vá automaticamente garantir esse caráter de "vida como ela é", bom, talvez não. Mas certamente ajuda. E em si, o filme é uma joia não por possuir algum tipo de grande trama dramática de superação de dificuldades em uma escola de segundo de Ensino Médio de um bairro de classe trabalhadora de Paris (daqueles cheios de imigrantes, pessoas pretas, pobres e, em alguma medida, marginalizadas). Ou mesmo algum suspense emergente, que nos deixe vidrados. Mas por permitir que a gente mergulhe naqueles universos, e reflita sobre aquelas histórias, apenas escutando aqueles alunos curiosos, complexos, cheios de sonhos e de receios sobre uma existência futura que se avizinha.

 


E é importante que se diga, não é porque a produção se passa 80% dentro de sala de aula, com discussões no limite entre o divertido e o aborrecido, que não haja nada acontecendo. Há tudo. Em certa altura, um dos carismáticos estudantes questiona a sexualidade de François . "A gurizada tem dito por aí que você gosta de homens", instiga Boubacar (Boubacar Touré). Sem se alterar, o professor lhe questiona sobre se aquilo faz alguma diferença para o aprendizado. E, bingo, esse assunto nunca mais volta porque, de fato, o que importa é que o docente tenha uma adequada metodologia, ou uma pedagogia eficiente. O que nem sempre será possível e é interessante notar que, a despeito das boas intenções de François, ele também se mostrará, eventualmente, como um sujeito falho, que nem sempre é capaz de conduzir a turma de forma correta, como fica evidente no instante em que ele dá a entender que duas estudantes se comportam como "vagabundas".

E é dessas pequenas complexidades que emergirão os fragmentos mais movimentados e comoventes. Há, por exemplo, um momento em que os meninos debatem longamente sobre seleções de futebol - o que torna o ambiente mais pesado já que, num grupo racialmente miscigenado, pode ser bastante natural que os filhos de imigrantes africanos, tenham preferência pela Costa do Marfim ou pelo Mali, em detrimento da França. Com a coisa descambando, e o problemático Souleymane (Franck Kesta) sendo conduzido à diretoria. Em outro instante, o já citado Boubacar é perguntado sobre o que lhe daria "vergonha". A resposta dele deixa uma pulga atrás da orelha: "sentar na mesma mesa para almoçar com a mãe de Burak". O que nos leva a inferir a respeito da complexidade das relações religiosas, raciais e culturais como um todo. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano, Entre os Muros da Escola segue como uma experiência engenhosa, que faz um verdadeiro raio x de uma sala de aula, com cada aluno funcionando como um indivíduo de personalidade distinta e com o professor sendo apresentado não como um Deus intocável, mas como uma pessoa cheia de imperfeições, mas que tenta fazer o melhor. Magnífico é pouco. 


terça-feira, 6 de maio de 2025

Pitaquinho Musical - Josyara (AVIA)

Um disco sobre o mais universal dos assuntos e que nunca parece se esgotar: o amor. Assim é AVIA, o terceiro registro de inéditas da sempre ótima Josyara e que tem como narrativa central o "encontrar-se e o perder-se no outro, as delícias e implicações disso" - como a artista baiana explicou em entrevista à Revista Noize. Sedutor, enigmático, minimalista mas intenso, esse é um álbum que trafega com naturalidade por todas as etapas da paixão, indo do fascínio inicial ao desencanto, passando no meio do caminho pelas possibilidades da solitude e, mais adiante, pelo entusiasmo de um novo amor. Nesse sentido, basta ouvir os versos que se encadeiam de forma homogênea em canções como Eu Gosto Assim (Sou bem fácil de acessar) - releitura de Anelis Assunção -, Festa Nada a Ver (Como pode me deixar / Nessa festa nada a ver), Corredeiras (Não, não preciso dessa mágoa) e De Samba em Samba (Não tem mais amor que te faça ficar / Não há mais nada que eu possa fazer), pra perceber como se estabelece esse conceito.

 


Peça central do trabalho, a deliciosa e sensualíssima Seiva tem um violãozinho cadenciado, que se espalha em efeitos eletrônicos econômicos, que culminam em um dos melhores refrãos da temporada (Pra te beber em taça cheia / Aluar / Sonho teu sabor cereja / Quero provar / Dança mansa / Pé na areia / Te embalar / Me lambuzar na tua seiva / Quero gozar). Com co-produção de Rafael Ramos e parcerias com nomes como Liniker, Pitty, Juliana Linhares, Pitty e Iara Rennó, este também é um álbum muito mais colaborativo do que, por exemplo, o anterior ÀdeusdarÁ (2022), uma experiência mais solitária e intimista - e que foi o nosso vigésimo colocado na lista de melhores discos nacionais daquele ano. Contemporâneo, mas sem perder a conexão com suas raízes ancestrais, este é um projeto que parece delicado em sua sonoridade, mas que é potente em suas entranhas.

Nota: 8,5

Tesouros Cinéfilos - Mulheres Diabólicas (La Cérémonie)

De: Claude Chabrol. Com Sandrine Bonnaire, Isabelle Hupert, Jacqueline Bisset e Jean-Pierre Cassell. Suspense / Drama, Alemanha / França, 1995, 112 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM SPOILERS]

Houve uma vez, durante uma entrevista ao famoso crítico de cinema Roger Ebert, que Claude Chabrol afirmou: "sou um comunista, mas isso não significa que eu tenha que fazer filmes sobre a colheita do trigo". Talvez, em uma interpretação meio livre, o que o diretor quisesse dizer é que, para se fazer um filme político ou mais panfletário, que marque seu ponto (ou ideologia), não há a necessidade de ser tão explícito. Até mesmo porque a sutileza pode contribuir para que o debate seja fortalecido. Sim, filmes sobre greves de trabalhadores por condições mais justas ou sobre proletários sofrendo nas mãos de patrões certamente escancaram os ideias de quem os faz. Mas e que tal uma obra sobre uma empregada doméstica que, revoltada pelas sistemáticas humilhações que sofre de uma família burguesa, resolve se unir a uma amiga funcionária dos correios para dar cabo desses ricos afetados?

E, mais do que isso, que tal se colocássemos nessa equação uma dupla de atrizes cheias de personalidade - no caso, Sandrine Bonnaire e Isabelle Huppert -, e ainda envolvêssemos a produção em uma aura de mistério à moda Hitchcock (que é algo que Chabrol sempre fez muito bem), com acontecimentos excêntricos se espalhando pela narrativa? Sim, enquanto a personagem da Regina Casé no ótimo Que Horas Ela Volta? (2015) simboliza a vitória do proletariado com uma arrojada entrada na piscina dos patrões (o que ela era impedida, mesmo sendo parte da "família"), em Mulheres Diabólicas (La Cérémonie), temos as protagonistas meio que ficando de saco cheio, invadindo a casa dos burgueses torpes que haviam recém demitido a diarista Sophie (Bonnaire) para, enquanto eles apreciavam uma ópera enfadonha de Mozart, sacarem suas armas e meterem bala. Extremo? Sim. Simbólico? Bastante.

 


 

Ok, por mais que não seja possível celebrar uma vitória plena na conclusão desse clássico moderno que completa 30 anos - baseado no livro de Ruth Rendell e que pode ser conferido na Reserva Imovision - há que se comemorar o espírito catártico, quase anárquico do desfecho, que junta um clima meio Laranja Mecânica (1971) com Violência Gratuita (1997). Chabrol sempre afirmou ser um sujeito fascinado por "assassinos sorridentes" e aqui essa parte da gargalhada entortada, em que a gente ri mas mais de nervoso do que qualquer outra coisa, cabe à debochada Jeanne, vivida com entusiasmo por Huppert. É ela que parece arquitetar, em suas entranhas, algum tipo de plano macabro que possa compensar Sophie das seguidas humilhações sofridas por ela, vinda de uma família de quatro pessoas (pais com dois filhos), com seu casarão onipresente, de jardim largo. E por mais atenciosa e estranhamente sorridente que a patroa, a afetada dona de uma galeria de arte chamada Catherine (a sempre bela Jacqueline Bisset) seja, parece haver algo muito errado no fato de ela nunca conseguir manter uma diarista.

Claro que Sophie também tem os seus segredos. Em um mundo em que nem o mais favorável espírito meritocrático a salva do analfabetismo  - o que ela esconde com receio e vergonha e que também dá conta das desigualdades vividas naquele cenário -, a jovem se mantém silenciosa e reservada, enquanto prepara os pratos cheios de proteína para aquela família que só tem dinheiro e mais nada. Mesquinha, Catherine sequer parece perceber o absurdo de apontar onde fica o quartinho da empregada, ao passo que seu marido mais ou menos truculento Georges (Jean-Pierre Cassell) não vê problema algum em desferir um tapão no rosto de Jeanne, quando ele desconfia de que ela esteja abrindo suas correspondências. Esses abusos justificam a violência desmedida? Talvez não. Sophie e Jeanne tem uma série de esqueletos no armário e traumas passados, que revelam que elas também não são flor que se cheire - o que, por sinal, é ótimo em uma narrativa que evita o maniqueísmo. Ainda assim, o filme tem força por lembrar às elites a importância de não meter demais o louco. Porque o proletariado pode se revoltar. E aí as forças, no mínimo, vão se equilibrar.

 

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Cinema - Pequenas Coisas Como Estas (Small Things Like These)

De: Tim Mielants. Com Cillian Murphy, Emily Watson, Eileen Walsh e Zara Devlin. Drama, Irlanda / Bélgica / EUA, 2024, 98 minutos.

Não são poucas as cenas em que assistimos Bill Furlong (Cillian Murphy), o protagonista de Pequenas Coisas Como Estas (Small Things Like These), lavando freneticamente as mãos. É algo que faz total sentido, já que o sujeito é um comerciante de carvão do interior da Irlanda que, ao final de mais um dia de trabalho, tem como ritual sagrado essa higienização. Só que, para além do sentido de se limpar antes de ir ao encontro da família, parece haver ali, naquele esfregar que parece evoluir de maneira sôfrega, uma alegoria a respeito da tentativa de se livrar de um outro tipo de sujeira. Algo que vai ficando claro - por mais sutil que tudo seja - conforme a narrativa se desenrola e de como entendemos, em alguma medida, os traumas de Bill do passado. Especialmente aqueles que envolvem o complexo relacionamento com a sua mãe. Entre memórias dolorosas que vêm e vão, o homem parece considerar a possibilidade de, no presente, minimizar esse sofrimento.

Claro que nem tudo será fácil. Ao menos não de maneira óbvia - ainda mais quando percebemos qual a ponta forte nesse jogo de poder entre um trabalhador e as instituições religiosas que operam na pequena New Ross. O ano é 1985 e o Natal se aproxima. Bill tem uma série de entregas de cargas de carvão, já que o frio parece crescer de maneira palpável - e em obras do tipo, não deixa de impressionar como as paisagens enevoadas, as estradas cinzentas e o céu sempre nublado, parecem contribuir para uma espécie de melancolia onipresente, que se espalha para além da trama. Para as bordas, para os limites. Que tornam tudo mais desolador. E tenso. Ainda que essa tensão, esse medo, não fique exatamente claro. Há um tipo de horror que parece incrustado naquela rotina - e que parece rondar a vida um tanto simplória do protagonista, um homem bem casado, com a amorosa Eileen (Eileen Walsh) e pai de cinco filhas.

 

 


Em certa altura, Bill faz uma entrega em um convento local - um espaço taciturno, fechado, pouco convidativo. Enquanto está no galpão despejando os sacos de carvão, consegue espionar uma jovem sendo entregue à força no local. Ela implora aos gritos para não ficar ali. Chama por sua mãe ou por alguém que lhe socorra. Bill fica paralisado. Não consegue agir. E assim permanece, meio letárgico. Olhando pela janela, enquanto a vida acontece. Por meio de flashbacks, descobriremos que sua versão menino era a de uma criança dócil, fã livros de Charles Dickens, de música e de quebra-cabeças. Em suas memórias, perceberá aos poucos como a infância relativamente feliz ao lado de sua mãe Sarah (Agnes O'Casey), escondia segredos que refletiriam no presente. E certamente não é por acaso que ao encontrar uma jovem escondida no mesmo depósito de carvão do convento, dias depois, ela revele que se chama Sarah (Zara Devlin). E que está grávida de cinco meses.

[SPOILERS A PARTIR DAQUI] Quem já assistiu ao ótimo - e sempre impressionante - Em Nome de Deus (2002) que, infelizmente não está disponível em nenhuma plataforma de streaming -, não demorará para compreender do que se tratam aqueles conventos. Famosas na Irlanda, especialmente no século passado, as Lavanderias Madalena - um tipo de asilo católico para mulheres - funcionavam como um espaço para onde eram enviadas mulheres supostamente pecadoras ou depravadas. Ou mesmo órfãs, abandonadas pelas famílias, vítimas de abuso (sim), prostitutas e outras. Lá, além de terem sua liberdade cerceada, eram escravizadas e humilhadas, com jornadas de trabalho excruciantes e sem espaço para discussão das penas. Sarah, a jovem grávida, tenta escapar de todas as formas desses rituais de tirania travestidos de "amor de Deus" e busca por salvação. Em confronto com a madre superiora (e asquerosa), Mary (Emily Watson), a religiosa tentará comprar o silêncio de Bill. Mas talvez ela não possa comprar as atitudes. E, bom, pode ser o caminho para que as portas, vagarosamente, se abram.

Nota: 8,0