De: Payal Kapadia. Com Kani Kusturi, Divya Prabha, Hridhu Harron e Chhaya Khadam. Drama, Índia / França / Holanda / Luxemburgo / Itália, 2024, 115 minutos.
"Fugir? Você não pode escapar de seu destino." A frase dita por Prabha (Kani Kusturi) para a jovem Anu (Divya Prabha), em certa altura do indiano Tudo Que Imaginamos Como Luz (All We Imagine is Light) parece resumir, em alguma medida, o contexto habitado por aquelas mulheres - submissas ao patriarcado onipresente, sem direito à privacidade ou mesmo impossibilitadas de tomarem suas próprias decisões em um cenário de conservadorismo. A gente tende a tomar o Brasil (graças a Deus) como régua em termos de avanços sociais, mas o caso é que em outros cantos do planeta a coisa segue meio estagnada. Em muitos casos indo até mais pra trás do que pra frente. A sentença de Prabha tem sim sua razão de ser. Mas ela também examina o fato de as próprias mulheres terem dificuldade em aceitar as transformações de um mundo que, mesmo reacionário, tende a evoluir. A colocar alguns temas em pauta.
Prabha é mais velha que Anu. Mais experiente. Mas também mais ressentida, mais rígida. Ambas trabalham como enfermeiras em um hospital de Mumbai - e a reação de Anu, diante de uma paciente que parece não muito bem informada a respeito de formas de prevenir uma gravidez, dá conta de sua personalidade mais, digamos, oxigenada. Prabha é taciturna, teve um casamento arranjado com um homem que agora trabalha na Alemanha, em uma indústria. Sem muita previsão de retorno, aparentemente. Estagnada em uma vida monótona em que a grande emoção é receber um presente do exterior - uma panela modernosa enviada pelo marido -, ela assiste a uma Anu que se diverte com o namorado Shiaz (Hridhu Haroon), ao mesmo tempo em que aconselha a jovem sobre seu futuro e suas decisões. Os pais de Anu já começaram a lhe enviar fotos de candidatos para um casamento arranjado. É o seu destino, argumenta Prabha. Mas será mesmo?
Em alguma medida são muitos os temas que circundam esse trabalho delicado da diretora Kani Kusturi e que foi premiado pelo Júri de Cannes no ano passado. E que são salpicados, aqui e ali, auxiliando na construção dessa tapeçaria complexa de uma Mumbai urbana e onírica, tecnológica, mas decadente, alegre e ocasionalmente sombria - como se estivéssemos em uma espécie de Blade Runner (1982) saído da Ásia. Sororidade, papel da mulher na sociedade, diferenças de classes, tudo vai se conectando para formar aquilo que, em certa altura, alguém resume como o "espírito de Mumbai". Mesmo que se esteja na sarjeta não será possível achar ruim. Prabha é cortejada por um médico de grande sensibilidade - seu nome é Manoj (Azees Nedumangad) - mas é incapaz de ceder aos encantos do sujeito, enquanto aguarda uma eternidade pelo marido que nunca volta. Pelo destino já traçado. Já Anu circunda pelo subúrbio à tiracolo do namorado, tentando encontrar um lugar que seja para uma intimidade a mais, longe da vista, ou dos julgamentos - com tudo se tornando mais complexo pelo fato de Shiaz ser muçulmano.
E como se já não bastasse esse cenário que emerge denso, fragmentado, com cada instante sendo exibido a seu tempo, alternando certa urgência com um espaço para contemplação, a obra ainda divaga sobre os contrastes existentes entre a vida simples e um vilarejo e o ambiente urgente e hostil de uma capital. É nesse contexto que surge Parvaty (Chhaya Kadam), a cozinheira do hospital que está em pé de guerra com um empreiteiro que pretende demolir a sua casinha para construir um arranha-céu no lugar. Gentrificação. Falta de autonomia da mulher. Modernização tocada por uma burguesia torpe. São outros temas que surgem e se espalham - e vão levando a narrativa. Ao cabo, essa é uma experiência viva, palpável, que busca a luz em meio a escuridão. Como evidencia o enigmático e comovente terço final. Por vezes é preciso se livrar de algumas amarras. Para que as coisas possam, de fato, se iluminar. Não soluciona as coisas em países fechados, misóginos, antiquados. Mas ajuda a tocar em frente.
Nota: 8,5
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