quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Novidades no Now/VOD - Um Bilhete Para Longe Daqui (The Escape)

De: Dominic Savage. Com Gemma Arterton, Dominic Cooper, Jalil Lespert e Frances Barber. Drama, Reino Unido, 2018, 101 minutos.

Um Bilhete Para Longe Daqui (The Escape) é aquele legítimo filme para tirar o espectador da zona de conforto. Pra gerar até um certo incômodo tamanho o realismo na análise das frustrações que podem surgir da insatisfação de uma vida vazia a dois. Roteirizada e dirigida por Dominic Savage, é uma obra áspera mas honesta, sincera. A trama nos coloca em meio a um casamento em crise que só nas aparências é "perfeito". Nele, Gemma Arteron é Tara, uma jovem sobrecarregada pelas tarefas domésticas que envolvem dois filhos, as compras, o jantar para o marido (Dominic Cooper), as toalhas limpas e cheirosas. É o tipo de vidinha esquemática e sem cor, que pode ser simbolizada pelo sexo robótico, pragmático e sem prazer nenhum que abre o filme. Aliás, o sexo beira o catastrófico e até o inconveniente, com um marido que pensa apenas no seu prazer e que é incapaz de, simplesmente, dialogar com a sua esposa. Aliás, o diálogo poderia estabelecer algum tipo de base para uma relação que parece minguar a cada dia.

Na essência, o filme escavoca essas pequenas violências sofridas pela mulher no dia a dia - que podem ir da transa não consentida ao abuso psicológico - e que, ao cabo, dão conta de uma sociedade que persiste num tipo de patriarcalismo que envolve o homem saindo de casa todos os dias para trabalhar, enquanto que a mulher vê os seus sonhos, desejos e anseios castrados, decepados pelas (in)conveniências da estabilidade familiar. Em certo dia, meio fatigada de tudo, Tara sai sozinha pelas ruas de Londres e encontra um pouco de cor em seus pálidos dias. Cor em coisas bem simples, mesmo: um raio de sol que afaga o rosto, uma paisagem inesperadamente bonita, um livro comprado no sebo local, um café. Aliás, é no livro que a protagonista se vê encantada pela história por trás da arte da tapeçaria - algumas delas expostas em Paris. Se empolga com a ideia de fazer um curso de artes, ter alguma atividade extracurricular que lhe faça brilhar os olhos e que não seja apenas correr atrás de brinquedos bagunçados pelo pátio e pratinhos com restos de sucrilhos dentro.


Bom, não é preciso ser nenhum adivinho para saber que o marido - seu nome é Mark - tentará retirar a ideia de curso de artes da cabeça de Tara. "Curso? Quem cuidará das crianças? Da casa? Você já tem 30 anos? Tem tudo, está feita", afirma a mãe da jovem em uma conversa que não apenas denuncia a discrepância promovida pelo choque de gerações, como ainda exprime um tipo de acomodação que talvez explique a própria existência de Tara dentro de um casamento que, talvez, fosse indesejado já na origem de tudo. Não é demais lembrar que, mesmo nos tempos atuais, muitas mulheres não são estimuladas para sair da lógica que as estabelecem como futuras mães, que cuidarão da casa e das refeições da família. E, bom, se você acha que pode haver algum exagero nessa análise, pense nos amigos, nos conhecidos ou mesmo naquelas pessoas - casais no caso - que jantam completamente em silêncio, enquanto deglutem um pedaço duro de carne. Sim, há exceções. Há casais felizes, parceiros. Mas esses são os que são capazes de reconhecer o espaço do outro. A sua individualidade. Estimulando-os para que realizem aquilo que desejam efetivamente, os SEUS sonhos. E não os de si próprios.

A frustração de uma personagem como Tara não é novidade no mundo das artes - e livros como A Vida Invisível de Eurídice Gusmão de Martha Batalha e outras películas como a ótima My Happy Family, disponível na Netflix, também tratam com propriedade desse "apagamento" vivido pelas mulheres, que desaparecem em meio a essa paisagem nebulosa que mescla infelicidade com insatisfação. Perguntando o tempo todo o que fez de errado, Mark é incapaz de acolher a sua esposa que, num certo dia, depois de sofrer mais um abuso, joga tudo para o alto, faz uma pequena malinha e vai para Paris, com a intenção de tentar se redescobrir. Hábil na construção da narrativa e das ambientações, Savage é muito feliz ao não depositar a alegria de Tara em um possível futuro e novo relacionamento - não que ele não possa acontecer e provavelmente acontecerá. Mas "descobrir" o mundo, respirar novos ares, conhecer outras pessoas - talvez tão cheias de segredos quanto ela - poderá ser o caminho para que Tara tome as suas decisões. É o tipo de obra que, muito provavelmente, desagradará os adeptos da família de propaganda de margarina e do "até que a morte nos separe". Mas há outras coisas que morrem pelo caminho. Identificar isso e conseguir atravessar essas barreiras, pode ser o cainho para uma vida livre, independente e feliz. Estando ou não estando ao lado de alguém.

Nota: 9,0

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