terça-feira, 8 de setembro de 2020

Grandes Cenas do Cinema - Náufrago (Cast Away)

Cena: a dolorosa perda do único e melhor "amigo".

Eu tenho a impressão de que alguns papéis só são possíveis com o Tom Hanks. Como exercício, tente imaginar o personagem Chuck Noland, de Náufrago (Cast Away) sendo interpretado por Brad Pitt, George Clooney ou, vá lá, Mark Rufallo. Não é que não seria possível. Óbvio, são atores muito talentosos e que certamente entregariam uma boa caracterização. Mas Hanks tem aquela "coisa" meio difícil de explicar, aquela capacidade de transmitir força e vulnerabilidade em uma mesma medida e que parece ideal em alguns filmes. E a meu ver esse combinado serve direitinho para que cenas como aquela em que o protagonista da obra dirigida por Robert Zemeckis perde a sua bola de vôlei - ou, no caso, o seu melhor e único "amigo" Wilson. Precisa haver aí algum tipo de desprendimento: algo que torne a sequência que poderia soar apenas boba, em algo mais crível. E o astro vencedor do Oscar por Philadelphia (1993) e Forrest Gump (1994) consegue esse efeito. Aliás, eu sempre choro copiosamente nessa parte.

Wilson surge no filme em uma parte crucial para o andamento da narrativa: após o acidente em que Noland vai parar numa ilha desabitada, no meio do nada, ele está literalmente reaprendendo a viver. Junto do seu abatido corpo, as ondas oceânicas levaram para a borda da ilha dezenas de pacotes da FeDex, empresa onde o protagonista cumpria suas atribuições de uma forma absurdamente meticulosa. Aliás, ele era aquele cara todo certinho, que tinha a pontualidade como regra - o que, claro, a vida na ilha vai quebrar. Relutando inicialmente em abrir as embalagens, Noland tem uma longa e desgastante sequência em que tenta fazer fogo para que possa não apenas chamar a atenção para a sua causa - vai que uma embarcação passe por ali -, mas também para aquecer os peixes, o seu alimento oficial. Enfadado pelo insucesso, abre todos os pacotes. O conteúdo é variado, e aparentemente inútil: um par de patins, um amontado de fitas VHS e... uma bola de vôlei da marca Wilson.


Interessante notar como, naquele contexto, praticamente todos os objetos terão alguma utilidade. As lâminas do patins se transformarão em afiadas facas - servindo também como improvisados espelhos. Os rolos das fitas poderão servir de amarras. Mas a bola de vôlei se transformará em algo maior: um amigo involuntário. Alguém com quem Noland passa a dividir suas impressões sobre tudo, seus objetivos, angústias e anseios. Inserindo na bola um rosto - feito com seu sangue -, o protagonista concede à ela o cargo de confidente. Praticamente nada acontecerá sem uma "troca de ideias" com Wilson. E mesmo quando a narrativa avança quatro anos e a bola, inevitavelmente murcha, o náufrago a reconfigura, recheando-a com galhos (que até parecem "cabelos"), o que a faz ser um tipo de seu semelhante. Com quase 1500 dias na ilha, Noland também está barbudo, cabeludo, exaurido. E resolve tentar sair da ilha construindo uma jangada e improvisando um tipo de vela, com uma estrutura metálica também "entregue" pelo oceano.

E será mar adentro, num ato desesperado, que Wilson inesperadamente terá seu trágico destino selado. Após uma tempestade que deixa a jangada em frangalhos, Noland está adormecido no instante em que a bola se desprende da estrutura instalada para que ela permanecesse em segurança. Quando o protagonista percebe que seu amigo já está a deriva, é tarde demais: tenta entrar no oceano, mas não pode perder a jangada de vista. Wilson, assim, vai se afastando, enquanto o náufrago grita dolorosos pedidos de desculpa pela "desatenção". E, assim, estaria criada para o imaginário cinéfilo uma das mais inesquecíveis histórias de separação entre amigos do cinema. Para além de uma obra sobre sobrevivência ou sobre recomeços - o final da história toda também dá conta disso -, O Naufrago é um conto improvisado de amizade, triste e curioso, que talvez só Hanks, com o seu talento único para a composição do sujeito comum em situações limite, consiga. Aliás, o astro chegou a ser indicado ao Oscar naquele ano, por esse papel. Num filme pequeno, escapista, quase com aquele clima Sessão da Tarde, é um feito e tanto!

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