sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Pérolas da Netflix - A Prima Sofia (Une Fille Facile)

De: Rebecca Zlotowski. Com Mina Farid, Zahia Dehar, Lakdhar Dridi, Nino Lopes e Clotilde Courau. Drama, França, 2019, 92 minutos.

Se tem uma coisa que o ser humano é especialista nesse mundo é em julgar o rabo alheio. No Brasil de Bolsonaro, então, nem se fala: aqui, a hipocrisia reinante fala mais alto, em um Governo que pretende tomar decisões sobre o corpo do outro, suas liberdades e vontades. Aliás, liberdade é uma palavra-chave para o ótimo A Prima Sofia (Une Fille Facile), filme despretensioso que estreou recentemente na Netflix. Exibido na quinzena dos realizadores do Festival de Cannes, é a típica "obra de amadurecimento". Na trama, Naïma (Mina Farid) é a jovem que, durante as férias escolares, recebe a bem resolvida prima do título em português (e que é encarnada de forma hipnotizante por Zahia Dehar). É verão, o clima é primaveril, as pessoas estão livres e dispostas e o que a diretora Rebecca Zlotowski faz, de alguma maneira, é mostrar que, na nossa vida, devemos ser apenas nós mesmos. E ser felizes. Sem julgamentos. Sem olhar o outro com preconceitos por não ser parte do padrão vigente.

Sofia é, ao cabo, um espírito "livre". E talvez seja um espírito mesmo: que assim como vem, vai, deixando marcas, influenciando vidas, modificando ideais. Eu diria até que a jovem, guardadas as proporções, é como aquele livro que a gente lê, desvenda, e que nos abre os horizontes. Nos desperta para que saiamos da letargia de nossos dias, em busca de algo mais palpável e que tenha significado para nós. Sofia, por exemplo, encara o sexo, o corpo, com naturalidade. Se utiliza dele, inclusive, para se aproximar de outras pessoas. Mas o corpo é dela, afinal. Ela decide. É ela que, aos poucos, mostrará isso para Naïma que, perto da prima, parece uma menininha que ainda não desabrochou. Que segue presa numa infância em que é paparicada pela mãe e que tem sonhos juvenis que são como as peças de teatro encenadas com o amigo Dodo (Lakdhar Dridi). E isso também não é problema, afinal de contas cada um tem seu tempo. E este não só pode, como deve ser respeitado.


É um filme sobre muitos "nadas" que significam bastante coisa - e a formação na juventude passa por muitas provações, muitas inseguranças a serem superadas e, quem vai mentir que nunca encarnou uma personagem daquilo que não era nessa fase da vida? Sensual, o filme tem na liberdade sexual uma forma de expressar suas intenções. E com cenas de transa reais, em que a conexão entre os corpos é um prazer, um deleite - diferentemente do que ocorre nas cenas de sexo de filmes hollywoodianos em que, invariavelmente, transar é um sofrimento. Aliás, a obra é toda sexy: de seus cenários quase paradisíacos, passando pelas enigmáticas sequências de flerte junto a barcos, até chegar as boates classudas e as praias aconchegantes. Na rotina dessa quinzena de férias, Sofia e Naïma se juntam para formar uma espécie de contraponto entre duas jovens: uma ambientada a uma vida hedonista, de luxo e de sexo e outra que tem a sua rotina abalada justamente por esse combo.

Diga-se de passagem, acredite, o público mais careta, mais conservador tem se queixado das liberdades tomadas pela película. Onde já se viu, afinal de contas, uma obra em que uma jovem curte, transa, vive a vida sem se preocupar com o futuro, família, filhos, carreira? Sim, é uma espécie de idílio nem sempre aceitável - e os consumidores da Netflix alegam não estar encontrando sentido na narrativa. Nesse caso, eu costumo ir na regra oposta: se a juventude anacrônica e lacradora não está gostando, há chance de estarmos diante de um bom filme. Aliás, a obra me fez lembrar outra, que foi tão criticada quanto esta, pelas cenas de nudez e pelas liberdades tomadas: Swimming Pool: A Beira da Piscina (2003), também de um diretor francês, no caso o ótimo François Ozon. Em ambos os casos há uma protagonista misteriosa, que parece saída de algum universo alternativo, mas que deixará profundas marcas naqueles que ficam. Viver a vida sem julgamentos, ser feliz, fazer aquilo que gosta. Me parece ser esse o recado de A Prima Sofia. Pena que os jovens da idade das protagonistas, não pareçam compreender isso.

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