quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Cine Baú - Brazil, O Filme (Brazil)

De: Terry Gilliam. Com Jonathan Pryce, Robert De Niro, Kim Greist, Bob Hoskins e Katherine Helmond. Comédia Dramática / Ficção Científica, Reino Unido, 1985, 142 minutos.

É relativamente conhecida a história de que houve certa controvérsia no Brasil, à época em que Terry Gilliam lançou sua excêntrica distopia. O País recém saía de mais de 20 anos de Ditadura Militar e uma ficção científica que criticava justamente o totalitarismo, a burocracia, a opressão militar e o atraso pode ter sido apenas uma curiosa inconveniência. E quem assiste com atenção Brazil, O Filme (Brazil), percebe que os sonhos surrealistas do protagonista Sam Lowry (Jonathan Pryce) estão sempre embebidos pelas notas de Aquarela do Brasil de Ary Barroso e, nesse sentido, entendo esse referencial como uma espécie de oposto: é no devaneio que surge a mulher amada, a natureza, a liberdade, a fantasia com uma vida idílica, simbolizada pela fuga a um passado distante. Ou que ao menos seja uma forma de escapar daquela vida mecânica, anacrônica, cheia de prédios apertados e geometricamente insípidos, de papeis e mais papeis, de tecnologia difusa. O Brazil para Gilliam seria assim, simbolicamente, uma espécie de porto seguro.

Aaah, se o diretor que integrava o coletivo Monty Phyton visse de perto o País de Bolsonaro de hoje, perceberia o quão irônico seria o sonho do povo brasileiro com a utopia de seu próprio passado. Num País cada vez mais violento, individualista, preconceituoso, intolerante e desigual, a obra de Gilliam se torna quase uma extravagância espalhafatosa, que bebe na fonte de outras clássicas distopias - como 1984, de George Orwell e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury -, para fazer a crítica a um Estado opressor e decadentemente utilitarista. Sam, o protagonista, trabalha para o Governo, em alguns dos milhares de setores, que abrigam outros milhares de burocratas e que levam nomes estranhos como "Recuperação de Informações". Em salas minúsculas - aliás, um contraponto a quantidade de cabos, de tubulações e de maquinários gigantescos que ocupam o cenário - o homem trabalha para identificar terroristas, que possam estar querendo derrubar as políticas totalitárias.


No percurso, Gilliam faz uma severa crítica a burocracia excruciante, que exige papéis e mais papéis, setores e mais setores para consertar, por exemplo, um simples ar condicionado - o que, no filme, TAMBÉM é atribuição do Estado. Aliás, como tudo. É quando Sam recebe a inesperada visita do subversivo engenheiro de refrigerações Harry Tuttle (Robert De Niro) - que não apenas conserta o equipamento do sujeito "por fora", como lhe arrasta para um esquema que denunciará uma série de equívocos feitos pelo Governo, que captura o homem errado em seus anseios de combater o terrorismo -, que ele passará a se questionar sobre suas atribuições e sobre o universo que o rodeia. Tuttle também poderá ser a chave para que o protagonista finalmente encontre na vida "real" Jill Layton (Kim Greist) uma insurgente que está em fuga por ser a única a saber dos equívocos cometidos pelas autoridades - especialmente a prisão do inocente Sr. Buttle (Brian Miller).

Uma revisão de Brazil nos faz perceber que, sim, como em muitas distopias o cenário "futurista" imaginado dialoga efetivamente com os tempos que vivemos - por mais que Gilliam não tenha acertado praticamente NADA em matéria de tecnologias vindouras, que surgem como versões exageradas de si próprias. Aliás, o desenho de produção em muitos casos é tão caótico, tão poluído, tão cheio de objetos grandes e perturbadores, que nos faz lembrar os cenários vistos em Blade Runner (1982). O contraponto seria o apartamento insípido e asséptico do próprio Sam, que faz lembrar a casa moderna e high tech do engraçadíssimo Meu Tio (1958), de Jacques Tati. Bom, o diretor pode até ter tido escolhas duvidosas na hora de imaginar a engenharia do futuro, mas acertou em cheio na percepção do vazio da coletividade (e da aristocracia), incapaz de parar a sua janta em meio a um violento e sangrento atentado, enquanto discute qual vai ser a próxima cirurgia plástica a ser feita. Mais certeiro impossível.

2 comentários:

  1. bah, meu filme favorito de todos os tempos! revejo todos os anos! cada fala, cada expressão facial é uma pérola! piadas recorrentes como o presente "exclusivo" que Sam ganha da mãe, e depois se revela o único presente de natal que todos compram e todos ganham durante o filme; as relações que o governo faz entre situações que quem está vendo o filme sabe que foram completamente aleatórias; e o samurai tecno-onírico, que se revela o próprio Sam - Sam you'r'I... enfim, perfeito!

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