"Você sabe no que somos bons? Em desistir das pessoas." Dita lá no meio do filme Corpus Christi (Boze Cialo) essa frase meio que resume a ideia central da obra do diretor Jan Komasa. Trata-se, afinal, de um filme que revela aos poucos a hipocrisia da sociedade. A mesma sociedade que tem muita facilidade para apontar dedos, para julgar, mas bastante dificuldade para perdoar. Ou para amar alguém "apesar de sua culpa". O filme foi o indicado da Polônia no último Oscar e, como é de costume, debate assuntos relevantes, nos fazendo pensar, refletir sobre aquilo que assistimos. Na trama baseada em fatos reais somos apresentados ao jovem Daniel (o expressivo Bartosz Bielenia). Morando em um reformatório onde está preso por um crime cometido no passado, se tornará bastante religioso - ele se emociona, se comove com as pregações -, a ponto de fingir ser padre quando chega a um pequeno povoado e faz amizade com um veterano clérigo (Zdzislaw Wardejn), após deixar o centro de detenção.
É nesse local, uma comunidade provinciana, cheia de "famílias de bem" com um sem fim de demônios guardados no armário, que terá início a grande farsa de Daniel. O clérigo terá um severo problema de saúde que o impedirá de fazer suas pregações, momento em que o jovem se apresentará como um possível substituto. Ao mesmo tempo em que não esconde o nervosismo diante de tamanha obrigação - o rapaz sequer recebeu a formação religiosa adequada -, Daniel conquistará a confiança da comunidade, especialmente no que diz respeito aos seus métodos para lidar com um trauma que envolve a todos do local (um acidente que resultou em muitas mortes e muitas feridas abertas). Ao mesmo tempo o seu passado sombrio insistirá em rondá-lo: ele é apenas um rapaz saído de uma prisão, que sequer respeita os dogmas que seriam caros à liturgia que pretende seguir: fuma, bebe, transa, usa drogas, vive intensamente. Mas é hábil, conquista, cativa os locais. A despeito da desconfiança da paroquiana Lídia (Aleksandra Konieczna).
É nesse contexto meio torto que se estabelece o debate proposto pelo diretor: com uma mente um pouco mais "aberta", Daniel passa a ganhar a confiança dos membros da comunidade - a exceção de pessoas mais conservadoras. Seus sermões põem o dedo na ferida de um sistema que gosta de oprimir e de julgar - e de pouco perdoar -, sendo a cena da inauguração da fábrica uma das mais marcantes nesse sentido. "Hoje queremos admitir que estamos doentes e essa doença é a ganância", prega o padre improvisado, para descontentamento de boa parte dos que estão ali. Questionar o modelo capitalista, afrontar o status quo que faz ele mesmo sofrer tanto não será sem um preço a pagar. Pior: quando Daniel passar a defender um suposto "criminoso" que mora na comunidade e que seria responsável por seis mortes ocorridas no passado, tudo piorará. Perdoar é bonito, afinal, da boca pra fora. Difícil é a expiação real dos pecados. Especialmente em um contexto em que segredos parecem prontos para vir à tona.
Hábil na construção do clima do filme, Komasa utiliza a técnica em favor da narrativa. A fotografia granulada, por exemplo, transmite uma sensação ambígua em que o caráter amistoso se mescla com as tensões que parecem prontas a aflorar. Rimas visuais como as sequências em que Daniel surge com os olhos esbugalhados após consumir duas "drogas" diferentes - a religião e a cocaína - também dão conta da força narrativa empregada pela potência daquilo que vemos. É um filme de sutilezas, de detalhes nem sempre percebidos claramente, mas que vão nos ganhando conforme a obra vai fluindo e nos pegando aqui e ali, seja numa reação inesperadamente violenta, seja num instante obliquamente reflexivo. É um filme nem sempre fácil e que talvez cause mais ojeriza àquela parcela mais ardorosamente católica, que provavelmente considerará absurda a tramoia que acompanhamos. Mas é obra pra tirar MESMO da zona de conforto, algo que o brutal desfecho encerra com perfeição.
Nota: 8,5
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