terça-feira, 14 de julho de 2020

Lado B Classe A - Outkast (Stankonia)

Ainda que Aquilani já pudesse indicar, aqui e ali, o caminho que transformaria o Outkast em uma das maiores bandas do planeta entre o final dos anos 90 e o começo dos 2000, no registro de 1998 ainda pesava no coletivo integrado por André 3000 e Big Boi o hip hop de batida mais tradicional, seca e hipnótica, com menos cores, fusões e detalhes que poderiam ser percebidos com a chegada de Stankonia (2000). Não chegava a ser um problema, já que isso não significava falta de riqueza em texturas ou camadas - algo presente desde o começo da carreira -, mas a impressão maior era a de que importava muito mais a mensagem do que a forma com que ela seria entregada. Canções como Rosa Parks - com título autoexplicativo sobre a ativista norte-americana que foi um símbolo da luta pelos direitos civis dos negros do Estados Unidos - ou Slump - com versos sobre violência policial e opressão -, certamente tinham e seguem tendo muito a dizer. Especialmente nos tempos atuais. Eram raps diretos. Inflamados.

Stankonia chegou pra dar mais colorido a coisa toda, mesmo quando não houvesse cores. Parecia haver naquela coleção de canções toda um equilíbrio maior entre soul, jazz, funk, ritmos urbanos - que mais tarde consolidariam o trap e até vertentes latinas como o reggaeton -, além do próprio hip hop. Peça central do registro, Ms. Jackson é um exemplo dessa explosão maior de possibilidades. A letra é um pedido de perdão de André 3000 a ex-sogra (a Ms. Jackson do título é a mãe de Erikah Badu, com quem o artista foi casado). Na ambientação da melodia uma sensação de tensão crescente, que se movimenta com fluidez, em meio a sintetizadores enigmáticos, urgentes e classudos. Há efeitos, encaixes eletrônicos, uso do próprio vocal como parte da instrumentação que tornam a faixa maior e mais cheia de groove - sendo capaz de equilibrar de forma perfeita o eco dos guetos, com a elegância gritante das rimas e de seu intertexto. Talvez seja uma das melhores canções do milênio - ou ao menos do começo dele.


Muito dessa "separação" - que verdade era uma forma difusa de conexão - sempre teve a ver com as diferenças criativas entre André e Big Boi. Tanto que em Speakerboxxx/The Love Below (2003), o registro seguinte pontuaria ainda mais essa distinção, com duas duas metades bem divididas. A parte com um hip hop mais puro, de uma vertente mais sulista (sua base é Atlanta) ficaria com Boi, enquanto a metade mais abrangente de estilos ficaria com André. E não é exagero dizer que a tese aqui levantada por esse modesto jornalista se confirma quando pensamos nos singles daquele trabalho - casos de Hey Ya! e seu inesquecível videoclipe e The Way You Move. No meio do caminho entre ambos os discos, Stankonia representou a fusão perfeita entre todos esse elementos, não sendo por acaso, um álbum lembrado até hoje como representante das transformações musicais que o novo milênio indicava - em que coletivos como Radiohead e artistas como Kanye West trafegariam na mesma playlist dos jovens mais antenados.

Nesse sentido, é possível afirmar que o registro funciona como uma espécie de Faça a Coisa Certa (1989), o clássico filme de Spike Lee, na versão sonora. Há uma urgência urbana e quente, representada nas cores fortes, nas ambiências de ritmos efervescentes, que contrasta com as mensagens vigorosas das letras, que podem versar sobre a hipocrisia da sociedade em um cenário em que impera o racismo estrutural (Gasoline Dreams), prazeres da vida (I Call Before I Cum) e gravidez na adolescência (Toilet Tisha). Não foi por acaso que sites especializados como o Pitchfork celebraram Stankonia como um dos mais valiosos trabalhos do começo do milênio - em uma lista com os 200 melhores, o álbum figurou em um honroso décimo terceiro lugar. "Stankonia é faclimente o esforço mais amplo e abrasivo do grupo. [...] É repleto de narrativas pessoais e pequenos fragmentos autobiográficos, com grandes ideias, diretas e oblíquas", apontou o crítico Kris Ex, na resenha à Pitchfork (em que a nota dada foi 9,5), enquanto reforçava o caráter ao mesmo tempo retrô e futurista do trabalho. A gente assina embaixo.

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