sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - O Buraco (Taiwan)

De: Tsai Ming-lian. Com Kang-sheng Lee, Kuey-mei Yang e Huy-xun Lin. Drama / Fantasia, Taiwan / França, 1998, 95 minutos.

Vamos combinar que o cinema oriental é especialista na produção de alegorias capazes de refletir o mal estar dos tempos que vivemos. Repletas de simbolismos, muitas obras de lá nos alcançam pelo não dito, pelas frestas ou pela sutileza na hora de falar de temas como incomunicabilidade humana, tecnologia, individualismo e solidão. E poucos filmes conseguirão ser tão representativos nessa abordagem, quanto o imperdível taiwanês O Buraco (Dong), do diretor Tsai Ming-ling. Tão minimalista quanto úmido, o filme transparece um sentimento permanente de melancolia, que é determinado já na narração em off inicial, que dá conta da existência de uma nova epidemia que tem assolado a população - que se vê "transformada" em algo parecido com baratas humanas. Mesmo com a indicação da necessidade de evacuação, dois jovens residentes de um condomínio (parece mais um cortiço), recusam-se a sair. São vizinhos: o homem mora no andar de cima, a moça no de baixo.

Mas não é que as condições de moradia sejam precárias: elas são fétidas, sujas. Chove sem parar, de forma intermitente e esta é a única água disponível, já que o fornecimento será cancelado. Por todos os lados há goteiras, infiltrações - na casa da jovem a água escorre por todos os cantos, fazendo-a secar as paredes e o chão na marra, com baldes e mais baldes de líquido sujo sendo juntados. Já no apartamento do rapaz, um encanador inicia um trabalho para reduzir as goteiras, mas o deixa pela metade. O resultado? Fica um pequeno buraco no meio da sala, que interliga ambos os ambientes, deixando a mostra a sala do andar de baixo. Mesmo sem ter nenhum contato com a sua vizinha, nenhuma conversa, nenhuma troca, o homem pode espiá-la. O que incomodará a moça, evidentemente: ela tentará fechar o buraco com fita crepe e espalhará veneno quando se sentir ameaçada.


É um filme simplíssimo, mas que quer dizer muito nas entrelinhas: em primeiro lugar estamos as vésperas da virada do milênio, período marcado por fortes incertezas, especialmente no que diz respeito ao futuro das relações, das tecnologias e de como isto nos afetará socialmente, politicamente, culturalmente. Segundo, é uma obra que torna literal o sentimento de solidão sufocada, como se aquele monte de água, o encharcamento coletivo, relegasse cada sujeito a uma existência enfadonha, excessivamente rotineira e sem grandes novidades. O homem vai trabalhar, volta. A mulher sai durante o dia, retorna. A vida é mesquinha, simplória, dolorida. Restando os sonhos pra sonhar: coloridos, vibrantes, sensuais, cheios de vida. E talvez não seja por acaso que, mesmo em meio ao absurdo da maçante, claustrofóbica e opressiva vida cotidiana, a jovem encontre tempo para a pequena busca de prazer (representado por um fragmento em que ela, sutilmente, se masturba).

Pois no meio das nossas enxurradas, das nossas cachoeiras, das nossas torrentes que nos afogam, nós não estamos afinal de contas tentando apenas ser felizes? E essa felicidades não se estabelece com o sentimento de troca, de ter alguém para dividir e que nos permita fugir do vazio dos dias? Instantes de cumplicidade - como na sequência em que o homem urina na pia (quem assistir vai entender) -, aos poucos vão dando forma à proximidade do casal central, que talvez no seu íntimo se deseje, mas que motivado pelo entorno absurdo, talvez se afaste. Com uma magnífica trilha sonora, um figurino cheio de contrastes e uma fotografia esverdeada que torna tudo ainda mais nauseante, o filme nos fazer perceber que, para sair das prisões que nós mesmos nos colocamos, talvez tenhamos que passar por alguns "buracos" - por mais apertados que eles sejam. Talvez isso signifique sair da zona de conforto. Ou tentar viver, minimamente, outra vida, aquela que está nos sonhos, doidinha para sair.

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