segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Picanha em Série - Years and Years

De: Russel T. Davies. Com Emma Thompson Rory Kinnear, Jessica Hynes, Anne Reid e Russel Tovey. Drama / Ficção Científica, Grã Bretanha e Irlanda do Norte, 2019, 350 minutos.

É simplesmente impossível assistir a Years and Years e não pensar naquilo que estamos vivendo na atualidade, no Brasil, enquanto experiência democrática, política, social. De que maneira estamos rompendo com os limites que separam as esferas pública e privada para nos transformar em figuras individualistas, niilistas e intolerantes. Se para haver mal-estar na civilização é preciso haver civilização - como afirma o professor de psicanálise da USP, Rinaldo Voltolini -, a impressão que temos é a de que estamos nos esforçando ao máximo para romper com qualquer código moral, ético. Estamos doentes. Depressivos. Ansiosos. Sem forças para lutar contra um mal onipresente, que se infiltra em nossas vidas, que nos ataca. Que nos torna pessoas mesquinhas, infelizes. Trabalhamos em empregos cada vez mais precários. Não nos aposentamos. Estamos sem saúde, sem educação, sem perspectivas. Acreditando em algum tipo de salvação mágica que, sabe-se lá de onde pode vir, enquanto destruímos a nossa sanidade e a nossa capacidade de convivência.

Na primeira cena da série - coprodução entre BBC e HBO -, assistimos a uma política assombrada com a polarização, com o ódio ao diferente. Com a falta de diálogo. Verborrágica, se apresenta como alguém autêntica, que não tem papas na língua, que fala a voz do povo e que parece disposta a, de forma iconoclasta, romper o status quo. Quebrando a lógica de existência das instituições, cativa pelo espírito anárquico, pela política feita no "empurrão", na marra, as turras. Ninguém parece dar muita bola para ela, que discursa em meio a outras figuras políticas, no horário nobre inglês. Ela está e estará lá. Onipresente. Determinando o futuro daqueles que lhe assistem, em meio a letargia dos dias, em meio as preocupações mesquinhas - sejam elas as festas que estão por vir ou alguma nova tecnologia que permite facilitar as comunicações. A política em questão é uma certa Vivienne Rook (encarnada com paixão desmedida por Emma Thompson).


A família Lyons ainda não sabe, mas figuras políticas como Vivienne - e tantas outras ao redor do mundo - determinarão praticamente TUDO que ocorrerá em suas vidas pelos próximos 15 anos, a partir de 2019. Enquanto a série parece uma espécie de This Is Us, com uma avó e quatro netos, mais cônjuges (e bisnetos) sobrevivendo, tendo pequenos momentos de alegria familiar, se frustrando, ficando ansiosas ou brigando, o mundo se arrastará para um cenário de caos, de guerras, de falta de diálogo e de avanço tecnológico. De desemprego galopante, de crise imobiliária, de quebra de bancos e de precarização da vida. Se por um lado, alimentos sintéticos representarão alternativas para que recursos naturais não se esgotem, países conviverão com crises diplomáticas, com conservadorismo, com xenofobia, com Brexit. Enquanto Trump se reelege e Angela Merkel morre (sim, a série projeta isso para logo ali adiante), os anos vão passando. E passando e passando. Com o mundo ficando pior. Mais difícil. Mais separado. Mais injusto.

De forma magistral, a jornalista Eliane Brum escreveu recentemente um artigo chamado Doente de Brasil, em que atribuía o mal-estar de nossos dias a uma força que avança e nos enclausura, nos deixando psicologicamente letárgicos e politicamente paralisados. Em meio aos absurdos proferidos (e cometidos) pelo nosso presidente, às mentiras inacreditáveis, uma descrença generalizada na força das instituições e uma censura das atitudes que já vem na "fonte", antes de acontecer. Que nos abate. Nos enfraquece. E, assim aceitamos as reformas Trabalhista, da Previdência, o desemprego, o aumento de preços e todo o descalabro, na esperança por dias melhores que nunca chegam. Anos e anos em que nós mesmos tratamos de destruir aquele mínimo de democracia que talvez tenhamos gestado no passado. Years and Years de forma muitíssimo resumida é sobre isso. É sobre como nós mesmos nos massacramos com as nossas atitudes, sem nem perceber. Seja votando em uma Vivenne Rook, seja aceitando aquilo que nos é imposto permanecendo calado, com medo.


Vale destacar ainda que poucas série oferecerão tantos arcos dramáticos interessantes, com tão poucos episódios - são apenas seis. Enquanto algumas obras da Netflix são a mais pura encheção de linguiça, a atração de Russel T. Davies preenche cada uma de suas curvas com sequências intensas que nos fazem refletir, se emocionar e se embasbacar. A inserção da tecnologia - que a aproxima de uma Black Mirror beeem melhorada - nos faz perceber o quanto estamos próximos e distantes ao mesmo tempo. Há o choque geracional, mas há o cultural - como é o caso daquele que não permite a um imigrante atravessar uma fronteira. E, enquanto na esfera privada cada um de seus indivíduos se esforça em perceber quem são os culpados - irmão, pai, filho, avó -, ninguém percebe que se está diante de um mal maior. Um mal que desestabiliza a civilização. Que lhe leva ao limite, lhe suga e que lhe faz ter atitudes extremas que, no fim das contas, podem até simbolizar um respiro. É a melhor série de 2019. Simplesmente isso.

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