sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Cinema - Rafiki (Rafiki)

De: Wanuri Kahiu. Com Samantha Mugatsia, Sheyla Munyiva e Muthoni Gathecha. Drama, Quênia / África do Sul / Alemanha / França / Líbano / Noruega e Holanda, 2019, 82 minutos.

Só o fato de um filme do Quênia ter a ousadia de tratar da temática homossexual já seria o suficiente para que Rafiki (Rafiki) merecesse todo o crédito do mundo. Foi notícia alguns meses atrás o fato de que o Tribunal de Justiça do País africano decidiu por seguir considerando crime a união entre pessoas do mesmo sexo, podendo os "infratores" serem punidos com até 14 anos de prisão. Sim, enquanto em alguns países o mundo parece andar pra trás (alguém aí falou em Brasil?), em outros lugares parece meio difícil de se andar pra frente. Aliás, a situação em outros países africanos, caso do Sudão, por exemplo, é ainda mais absurda, com os réus podendo ser condenados até a morte. Bom, já disse isso no começo da resenha e repito: em um País em que as pessoas são presas por serem gays, um filme foi feito pra discutir o assunto. Não para provocar, mas para naturalizar o amor, para tentar demover as lideranças do absurdo de se condenar o público LGBTQI por simplesmente ser quem é.

Bom, não adiantou muito. Rafiki foi proibido no Quênia. Ao invés de orgulho por uma película bem executada, cheia de paixão, de cores e de música, ainda que com uma ou outra deficiência técnica, o desprezo. O desprezo, como certamente ocorre aqui no Brasil, por aqueles que abominam as artes e o que elas representam enquanto oportunidade para que se quebre o status quo, se questione aquilo que se está estabelecido e se incomode. O filme não tem nada de diferente em relação a qualquer outros que tenha a temática LGBTQI. Nada. Ao contrário, é até bastante econômico e sensível ao mostrar a impossível relação entre Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheyla Munyiva). Não há nudez, não há beijos quentes e sexo intenso. Há apenas o que se insinua, que se está guardado para os olhares, para os sorrisos, para um silêncio capaz de preencher muito mais do que um amontoado de palavras.


Em si a história até parte de um clássico clichê: Kena e Ziki são filhas de dois homens que são adversários políticos na cidade em que moram. O pai de Ziki parece ser bastante conservador, religioso, temente à Deus. Já o pai de Kena parece ser levemente mais progressista, está separado e esperando um filho com a sua segunda esposa. De qualquer maneira, a aproximação entre as jovens representará um baque para todos, descortinando uma série de cenas de violência, de agressões e de dores não apenas físicas, mas da alma. Impossível tentar imaginar como é amar alguém e não poder manifestar isso na rua, na frente de todo mundo. Não poder pegar na mão, dar um beijo carinhoso, afagar os cabelos, abraçar com firmeza e ternura, sem estar sendo julgado e imediatamente condenado. Aliás, a sociedade que julga e condena é representada no filme pela personagem Mama Atim (Muthoni Gathecha), a fofoqueira do bairro.

Como não poderia deixar de ser é uma obra dura, ainda que extremamente poética, valendo-se ainda de contrastes para reforçar aquilo que pretende. Como exemplo, é interessante notar como a cidade surge como um amontoado de prédios cinzento e sem vida, ao passo que Kena e Ziki, com suas roupas e acessórios multicoloridos, surgem como uma representação da África viva, apaixonada, vibrante. O mesmo vale para rica trilha sonora composta por ritmos como o trap e o hip hop, que surgem como a antítese da Igreja dura, quadrada, parada e de seu pastor disposto à inquirir jovens que estão florescendo, descobrindo o amor, vivendo. Nas imperfeições técnicas de uma cãmera mal ajustada ou de uma edição de som que coloca voz nas personagens mesmo que elas não mexam a boca, o charme de um filme que desafia, que pulsa, que ama. É a resistência, mas com a guarda baixa, carinhosa, gentil, diante dos punhos, das armas, da violência em um mundo que, a cada dia, parece mais atrasado, mais parado no tempo e mais distante de um ideal de justiça social e de respeito às diferenças.

Nota: 8,0


Nenhum comentário:

Postar um comentário