terça-feira, 6 de agosto de 2019

Tesouros Cinéfilos - 3 Faces (Se Rokh)

De: Jafar Panahi. Com Jafar Panahi, Behnaz Jafari e Marziyeh Rezaei. Drama, Irã, 2018, 100 minutos.

Tá aí uma profissão que não deve ser nada fácil: ser diretor de cinema no Irã. E Jafar Panahi que o diga. Proibido de filmar desde 2010 em seu País de origem por, supostamente, utilizar a sua obra para criticar o Governo, o diretor tem feito verdadeiros malabarismos para seguir trabalhando. Em prisão domiciliar, o realizador também está impedido de deixar o Irã pelos próximos 20 anos. E o que ele fez diante da censura? Filmes. Como? Da maneira que deu, misturando metalinguagem e documentário, dramatizando não apenas a sua situação - que representa a de muitos artistas que são vigiados de perto pelos aiatolás -, mas também a da atrasada sociedade iraniana, machista, patriarcal, excessivamente conservadora e provinciana. E esse 3 Faces (Se Rokh) pode ser considerado a sua obra-prima, desde que a sua clausura, e a produção clandestina (e ainda mais provocativa), começou.

Nele, Panahi junta todos os elementos que têm feito o seu cinema recente: a economia, a mensagem que sai pelas frestas ou pelo não dito. As poucas palavras, mas que dizem muito. A imagem que surge avassaladora, poderosa, com grande investimento em planos-sequência, amplamente naturalistas. É o melhor "não cinema" que a gente pode assistir. Se Isso Não É Um Filme (2011) era o retrato do dia a dia de um diretor em cárcere privado (mas cheio de ideias) e Táxi Teerã (2013) era uma saborosa (e curiosa) experiência cinematográfica em que o diretor encarnava um taxista que recebia passageiros para uma discussão geral sobre as dificuldades socioculturais do País, 3 Faces é um misto de suspense com drama que dá conta do talento de um realizador que faz mais com menos. E que nem por isso deixar de enfiar o dedo na ferida, quebrando regras estabelecidas e usando a sua própria existência para a crítica ao status quo, à religiosidade beligerante e aos costumes ultrapassados.



A trama começa com uma filmagem amadora de uma jovem apaixonada por cinema, que pede socorro à famosa atriz Behnaz Jafari (interpretando a ela mesma) para fugir de sua família, que não aceita o estilo de vida que ela deseja levar - ser artista e não cumprir com o papel destinado às mulheres de seu vilarejo (casar, ter família, filhos, etc), no norte do Irã, seria motivo de desonra. O vídeo termina com um aparente suicídio: há uma corda, um tronco e um rochedo que sugere um lugar mais alto, ermo, além de uma filmagem confusa. Comovida com o material recebido, Jafari pede ajuda ao amigo Panahi (também ele mesmo) para descobrir o que de fato aconteceu. Assim, migram para o Norte do Irã, em busca de informações que possam levá-los ao vilarejo de onde partiu o material, tentando descobrir ainda se ele é real ou fruto de algum tipo de montagem ou manipulação.

No caminho, encontrarão diversos moradores das regiões remotas, o que escancarará uma série de contrastes. E de contradições também. Se por um lado, o irmão da jovem desaparecida não consegue suportar a ideia de ver a irmã enveredando para o lado das artes - provavelmente coisa de "vagabundo" que não tem Deus no coração -, por outro chega a comover o tratamento dado à Jafari, quando os locais percebem se tratar da atriz que está nas novelas em que consomem. Há respeito e admiração, mas há também mesquinharia, na ideia de que Jafari e Panahi poderiam resolver os problemas estruturais daquele local, ou que tivessem de ter um motivo maior para estar lá, que não apenas o de (tentar) salvar uma vida. É a admiração, seguida da chantagem, como na impagável sequência em que um morador local envia uma carta com um material bastante "peculiar" para que Jafari entregue a um outro ator - este, um sujeito que interpreta figuras duronas em filmes de ação.



Ainda que a película não demore em esclarecer o ocorrido, é preciso que se diga que ela é muito mais um eco de resistência do papel da mulher em uma sociedade amplamente machista. Se Jafari representa a realização alcançada, a jovem desaparecida é a luta contra um sistema que oprime, que agride, que não prevê a liberdade de pensamento, de ações. No filme dentro do filme, há também uma homenagem ao cinema: seja na "obra" da jovem suicida (que deixa o final em aberto), seja na ligação da mão de Panahi, que não quer que ele faça filmes para não ter problemas com o Governo (ele diz que ele não está fazendo), seja no esforço do próprio diretor em fazer uma obra de arte com poucos recursos - e ver Jafari lhe provocando sobre a existência de um "próximo filme" é um deleite. Com boas metáforas - a do boi no meio da estrada é uma das melhores -, a obra venceu o prêmio de Melhor Roteiro no último Festival de Cannes. Panahi não estava lá - está proibido de sair do País, como já dissemos. Mas a sua voz segue ecoando pelo mundo. Para a alegria dos cinéfilos.

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