quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Disco da Semana - Karina Buhr (Desmanche)

Não sei como acontece para vocês, mas para este jornalista que vos tecla muitas das manifestações artísticas e culturais da atualidade funcionam como uma espécie de refúgio onde podemos encontrar disposição para a luta e para resistir a tudo que está aí. São muitos os absurdos e a vontade de gritar por vezes parece abafada, como se fôssemos invadidos por uma espécie de letargia propagada pelo entorno, pela falta de força, pela descrença generalizada nas instituições ou naqueles que nos governam. Bom, e aí restam a música, os livros, os filmes, as séries. Aquilo que, por vezes, parece colocar um pouco a nossa cabeça no lugar para que percebamos que não estamos sozinhos nesse mundo de trevas. E que pode haver algum fiapo de esperança em meio ao niilismo, a angústia e a desolação. Bom, o trabalho da artista Karina Buhr, desde sempre nos auxilia nesse processo - e com o recém-lançado Desmanche, não é diferente.

Essa percepção da artista como uma voz que ecoa o grito dos oprimidos em um contexto de ódio e intolerância não é algo observado apenas nas letras, mas também nas melodias eventualmente selvagens, caóticas, cruas. Como se na balbúrdia sonora pudesse estar representada a angústia de quem não se cala. Como se em cada guitarra mais nervosa, ou numa percussão mais animalesca, tribal, Karina surgisse como uma espécie de porta-voz que te resgata, que te reergue. Sim, a gente sabe que ouve música para se divertir, para descontrair. Mas a cantora parece saber que em tempos como os que vivemos - que legitimam, inacreditavelmente, o machismo e a homofobia pelo voto -, não dá pra ficar só no "tchurururu, como é lindo o seu amor". Ainda em 2017, quando do lançamento do furioso Selvática, seu trabalho anterior, Karina disse a revista Noize que "tudo o que faz na vida é no sentido de viver em paz e isso inclui o feminismo".


Daquela vez a artista apareceu sem camisa na capa do álbum e, bom, vocês podem imaginar a comoção que foi - com direito ao Facebook censurando a imagem que ilustrava o trabalho. "É ridículo ninguém poder ver peito de mulher sem ser num contexto de objetificação machista", comentou ela na mesma entrevista para a Noize. E se de lá para cá, com a eleição de Bolsonaro e com a desculpa da "polarização política" a opressão às mulheres só aumentou, nada mais natural do que a artista voltar com um disco que atualiza os temas que lhe são caros. E, assim, Desmanche, surge como um álbum de versos políticos, urgentes e de rápida compreensão. Basta ouvirmos a artista repetir como num mantra que o "Exército tá matador" na inaugural Sangue Frio, que já compreenderemos o seu propósito.

Alternando momentos mais "poéticos", caso de Amora, com outros de maior intensidade, como Temperos Destruidores, a compositora constrói um painel que resume a atualidade - com o sujeito trafegando no limite, amando, lutando, persistindo, trabalhando. Na grudenta Lama, uma batida regionalista, que lembra o manguebeat de Chico Science, o eu lírico suplica: De ação em ação vive a besta em cada um / Sem raiva padece nenhum. O expediente se repete em Filme de Terror que, em meio a citações a Alfred Hitchcock e a melancolia generalizada lembra: "Ânimo, valentia, coragem". Eventualmente herméticas, as letras se apresentam como pequenos fragmentos recheados por figuras de linguagem, metáforas, paródias. O óbvio não sendo o óbvio em meio ao caos estabelecido. Mas em meio à tanta secura, ainda há espaço para a esperança, como comprova a adocicada Peixes Tranquilos, quase ao final do registro. Uma obra forte, empoderada. E necessária.

Nota: 8,5

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