Essa percepção da artista como uma voz que ecoa o grito dos oprimidos em um contexto de ódio e intolerância não é algo observado apenas nas letras, mas também nas melodias eventualmente selvagens, caóticas, cruas. Como se na balbúrdia sonora pudesse estar representada a angústia de quem não se cala. Como se em cada guitarra mais nervosa, ou numa percussão mais animalesca, tribal, Karina surgisse como uma espécie de porta-voz que te resgata, que te reergue. Sim, a gente sabe que ouve música para se divertir, para descontrair. Mas a cantora parece saber que em tempos como os que vivemos - que legitimam, inacreditavelmente, o machismo e a homofobia pelo voto -, não dá pra ficar só no "tchurururu, como é lindo o seu amor". Ainda em 2017, quando do lançamento do furioso Selvática, seu trabalho anterior, Karina disse a revista Noize que "tudo o que faz na vida é no sentido de viver em paz e isso inclui o feminismo".
Daquela vez a artista apareceu sem camisa na capa do álbum e, bom, vocês podem imaginar a comoção que foi - com direito ao Facebook censurando a imagem que ilustrava o trabalho. "É ridículo ninguém poder ver peito de mulher sem ser num contexto de objetificação machista", comentou ela na mesma entrevista para a Noize. E se de lá para cá, com a eleição de Bolsonaro e com a desculpa da "polarização política" a opressão às mulheres só aumentou, nada mais natural do que a artista voltar com um disco que atualiza os temas que lhe são caros. E, assim, Desmanche, surge como um álbum de versos políticos, urgentes e de rápida compreensão. Basta ouvirmos a artista repetir como num mantra que o "Exército tá matador" na inaugural Sangue Frio, que já compreenderemos o seu propósito.
Alternando momentos mais "poéticos", caso de Amora, com outros de maior intensidade, como Temperos Destruidores, a compositora constrói um painel que resume a atualidade - com o sujeito trafegando no limite, amando, lutando, persistindo, trabalhando. Na grudenta Lama, uma batida regionalista, que lembra o manguebeat de Chico Science, o eu lírico suplica: De ação em ação vive a besta em cada um / Sem raiva padece nenhum. O expediente se repete em Filme de Terror que, em meio a citações a Alfred Hitchcock e a melancolia generalizada lembra: "Ânimo, valentia, coragem". Eventualmente herméticas, as letras se apresentam como pequenos fragmentos recheados por figuras de linguagem, metáforas, paródias. O óbvio não sendo o óbvio em meio ao caos estabelecido. Mas em meio à tanta secura, ainda há espaço para a esperança, como comprova a adocicada Peixes Tranquilos, quase ao final do registro. Uma obra forte, empoderada. E necessária.
Nota: 8,5
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