segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Cine Baú - Kes (Kes)

De: Ken Loach. Com David Bradley, Colin Welland, Lynne Perrie e Freddie Fletcher. Drama, Irlanda do Norte / Grã-Bretanha, 1969, 110 minutos.

O cinema de forte cunho político, com ampla discussão de temas sociais - uma das marcas da filmografia do diretor Ken Loach -, talvez não fosse ainda tão presente quando ele lançou, há 50 anos, o comovente Kes (Kes). Ainda assim, as injustiças de um mundo nada acolhedor para aqueles que convivem com a vulnerabilidade, já podem ser percebidas na história do menino Casper (David Bradley), que encontra refúgio na "amizade" com um falcão, que ele resolve adestrar. Casper é pobre a ponto de ter de dividir uma pequena cama de solteiro com o Jud (Freddie Fletcher), seu irmão encrenqueiro. Com uma mãe não muito presente e uma escola punitivista, cheia de colegas violentos, praticantes de bullying, o jovem divide seu tempo entre o trabalho como entregador (sim, ele tem responsabilidades de adulto) e os momentos em que se encontra com a ave, com quem interage, treinando-a, dando comida e procurando alguma abstração da pesada realidade.

É uma obra bastante poética, bonita. Mas também dura, desoladora. Casper é provocado o tempo todo. Por ser pobre, por ser um aluno desligado, por ter uma mãe separada que, vejam só, resolveu ter um novo namorado. E quando encontra na vizinhança, em uma espécie de construção abandonada, o falcão de quem se aproxima curioso, tem de "brigar" para conseguir um livro de instruções que lhe ensine alguma coisa sobre como lidar com esse tipo de pássaro. E, nesse sentido, cada avanço obtido pelo menino é celebrado pelo espectador, que acompanha as bucólicas cenas em que a ave voa, em meio a natureza verdejante, mesmo em dias cinzentos, de frio calejante. A fotografia granulada, "setentista", contribui para que se estabeleça um caráter quase documental na película. Estamos ao lado desse menino que aparece praticamente o tempo todo em cena - entregando, diga-se, uma atuação apaixonante, que mistura inocência e astúcia em igual medida.


Ainda que seja um filme pesado do ponto de vista das injustiças sociais - estamos em uma Inglaterra industrial, com as camadas mais pobres encontrando trabalho em setores ligados à produção de carvão e outros minérios -, há espaço para uma leveza que é alcançada na descoberta juvenil do prazer proporcionado pelas pequenas coisas. Pelo reconhecimento das pequenas conquistas. A cena em que o jovem relata o processo de adestramento do falcão na sala de aula começa como uma pequena provocação até avançar para um tratado apaixonado sobre um hobby valioso. Só que Casper não sabe o que é um hobby - como podemos perceber na sequência em que ele, distraído, vai a uma entrevista de emprego. Ele está interessado apenas no falcão e na sua interação com ele. Um livro e um pássaro. O aprendizado num microcosmo, que acaba sendo muito maior do que na escola que não lhe acolhe ou na família distante.

Aliás na tentativa de mostrar um educador excessivamente exigente, Loach entrega uma cena absurdamente hilária: a de um professor (Brian Glover) que joga futebol com os alunos, mas não sabe perder. A sequência é tão divertida quanto patética, com o homem - na faixa de seus trinta e muitos anos - gritando com as crianças, correndo atrás delas aos berros, repetindo o pênalti que foi defendido pelo goleiro, instruindo de forma alvoroçada. Mas esse razoável alívio cômico - ainda que bem-vindo -, é só uma pequena ponta, quando percebemos que a realidade dura de Casper retorna de forma cruel para a sua vida, no último ato. Na metáfora da ave que nunca voou para longe, selando o seu destino, fica a reflexão para o próprio menino: em um mundo de poucas oportunidades para as famílias pobres, há que se aproveitar qualquer brecha que surja para um voo mais alto.

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