segunda-feira, 20 de maio de 2019

Grandes Filmes Nacionais - Tatuagem

De: Hilton Lacerda. Com Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa, Rodrigo Garcia e Ariclenes Barroso. Drama / Comédia, Brasil, 2013, 110 minutos.

Verdadeiro caldeirão artístico em que o teatro se mistura com música, a dança se funde com a literatura, resultando em uma manifestação cultural absolutamente simbólica, de grande riqueza poética e amplamente profunda em sua abordagem: dessa forma seria possível resumir, ao menos em partes, a importância de Tatuagem, do diretor Hilton Lacerda - certamente um dos mais valiosos filmes nacionais desse milênio. A impressão durante a apreciação do longa é a de estarmos mergulhados em um universo frequentemente festivo, anárquico, colorido, em que o vaudeville francês se mistura com o kitsch regionalista. Não há limites para a abordagem das artes na obra, que vai no limite do corpo e do sexo como representação política, para formar um panorama de resistência ante a uma ditadura que se avizinha de forma irreversível. Sim, é aquele filme que fará as "famílias de bem" regurgitarem, certamente.

A trama se passa em 1978, no Recife. De um lado, a trupe teatral Chão de Estrelas, coordenada por Clécio (Irandhir Santos), prepara um novo espetáculo em que o deboche e as cenas de nudez são utilizados com a intenção de incomodar, de quebrar paradigmas e de fugir do lugar comum. De outro lado, o jovem Fininha (Jesuíta Barbosa) está no exército, em um período em que a opressão dos militares era o padrão - estávamos nos Anos de Chumbo do Governo Geisel. Fininha é o cunhado da expansiva Paulete (Rodrigo Garcia), uma das estrelas do coletivo e acaba conhecendo este universo, no dia em que vai visitar a irmã da namorada para lhe entregar uma encomenda. Fininha é gay e a convivência com um grupo livre de preconceitos fará com ele se permita mais, iniciando um relacionamento com o próprio Clécio. Mas e como fica o dia a dia no exército? Como lidar com aquilo que está sentindo e, consequentemente, com o bullying (e a hipocrisia) dos colegas?


A gente sabe que, em algum momento, estes universos tão antagônicos poderão entrar em ebulição. Mas a riqueza de Tatuagem não está exatamente nesse arco dramático até certo ponto previsível - e que, não surpreende, dialoga com o nosso contexto político/social/cultural atual -, e, sim, em outros aspectos, como é o caso da abordagem do amor sem falso moralismo, de forma verdadeira e com grande respeito. Assistir as interações dos integrantes do Chão de Estrelas é estar diante de uma espécie de apresentação permanente de teatro em que a ficção sai da tela dando lugar a uma realidade festiva, tropicalista, humana. De pessoas que se querem bem independente de cor, de sexo, de altura ou de conta bancária. Não é que não haja problemas. Mas são problemas reais e maiores do que homens se relacionando com homens: há o medo da censura, o dinheiro que está minguado, as paixões que geram ciúmes, as preocupações com o futuro dos filhos. É o Brasil real, mas o Brasil que se diverte, que debocha das instituições, que é iconoclasta e livre para se expressar.

E há um grupo de atores claramente dedicado a entregar o melhor desse universo que, em alguns instantes chega quase a beira o delírio onírico - como quando das apresentações da infatigável Polca do Cu. Se por um lado, Barbosa aposta na sutileza como matéria-prima para trafegar em universos bastantes distintos (repare o quanto comunica o seu olhar, quando ele está pela primeira vez no Chão de Estrelas), por outro, Garcia chega a beirar o histrionismo, transformando Paulete na personagem de Almodóvar, que veio parar em um filme brasileiro. Irandhir equilibra tudo, sem afetação, sem caricatura, imprimindo grande profundidade a um personagem que, no fim das contas, precisa manter o foco para que nada desabe. As vezes pode parecer até meio bobo, ainda que nunca infantil: mas uma provocação dessa envergadura, que ainda coloca em cheque o comportamento truculento de regimes totalitários (que muitas vezes escondem jovens perturbados e que tem dificuldades em lidar com a própria sexualidade), não é pouco. O filme foi o 73º da história em uma votação feita recentemente pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Não é pouco.


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