terça-feira, 19 de março de 2019

Tesouros Cinéfilos - Boy Erased: Uma Verdade Anulada (Boy Erased)

De Joel Edgerton. Com Lucas Hedges, Nicole Kidman, Russel Crowe, Joel Edgerton, Flea e Troye Sivan. Drama, EUA, 2019, 114 minutos.

Parece inacreditável que, em pleno século 21, ainda existam clínicas para "restauração sexual" - aquelas mesmas, que prometem a cura gay - espalhadas pelo mundo. Bom, somente nos Estados Unidos elas estão presentes em 36 estados, afetando a vida de centenas de milhares de gays, lésbicas, transexuais, entre outros. No Brasil não é diferente e não são poucos os vídeos da atual ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves prometendo a conversão de jovens "doentes" ou que são classificados como "aberrações". Sim, as pessoas se preocupam demais com a sexualidade - pra não dizer o cu - dos outros. Nesse sentido, preferências sexuais são um trauma não do passado, mas da atualidade e não é por acaso que figuras muitas vezes ligadas à Igreja Evangélica, prometem alguma solução mágica (como se gostar de homem ou de mulher fosse um mero "problema psicológico").

Bom, o filme Boy Erased: Uma Verdade Anulada (Boy Erased) trata, magistralmente, sobre este tema. Aliás, o filme foi proibido aqui no Brasil, sob a desculpa de problemas envolvendo "custos de campanha e estimativas de bilheteria". Então, você já sabe: qualquer coisa proibida nesse Brasil absurdamente conservador, preconceituoso, reacionário, retrógrado e intolerante é ainda melhor. Ainda  mais em um País em que o principal líder da nação não tem nenhum pudor em afirmar que preferiria que seu filho "morresse em um acidente do que aparecesse com um bigodudo por aí". Bom, s pai vivido por Russell Crowe é o pastor da Igreja Batista Marshall Eamons. Ao lado da esposa Nancy (Nicole Kidman) ele não quer a morte do filho Jared (Lucas Hedges) - que parece ter perdido o caminho da fé, ficando meio "afeminado" - colocando-o no instituto Amor Em Ação, que promete a cura por meio de um programa de reorientação sexual.


Não é preciso ser nenhum adivinho pra saber que a negação daquilo que Jared é em sua essência será um problema - especialmente quando a terapia se mostrar absurdamente ortodoxa, com direito a temas de casa que devem descrever o "catálogo de pecados" dos familiares e outras atividades comportamentais que buscam transformar aqueles meninos em homens que estarão prontinhos para constituir família (assim como Deus mandou). Sim, não dará certo. Jared é gay e terá sua sexualidade oprimida por pais nada compreensíveis (e que acham que podem decidir sobre o corpo do filho) e por uma Igreja que serve apenas para apontar dedos para pecadores ocasionais. A bomba-relógio prestes a explodir será ampliada por um passado que envolve outros abusos, como um traumático episódio de estupro ocorrido na faculdade em que o rapaz estudava.

A temática não é nada fácil, mas Joel Edgerton (em sua segunda incursão na direção, após o surpreendente O Presente, de 2015) a conduz tomando partido, mas sem exagerar no panfletarismo. O assunto é delicado e uma eventual mão pesada, que diluísse a sutileza da abordagem, poderia colocar tudo a perder - e não deixa de ser absolutamente comovente ver os "avanços" feitos na clínica sendo tratados como possibilidades reais de transformação. O próprio Edgerton, que interpreta um dos professores dessa espécie de internato, surge inicialmente como um sujeito compreensivo e de voz calma mas que vai, aos poucos, se tornando a caricatura de um sistema que oprime jovens que não estejam adequados àquilo que prega a religião. A fluidez narrativa, nesse sentido, é um dos grandes trunfos: tudo é apresentado sem pressa, ainda que o ranço diante daquilo que assistimos seja inevitável.


Com elenco afiadíssimo e com grande química - há participações especiais dos músicos Flea (como um veterano ex-drogado/pervertido que se converteu) e Troye Sivan (como um dos colegas de Jared) - é praticamente inexplicável o fato de um filme tão relevante, com interpretações tão convincentes, ter sido esnobado nas premiações (especialmente diante da "abertura" vista na Academia nos últimos anos). Bom, esse fato não apaga a importância da obra que nada mais é do que uma reverência a nossa capacidade de escolher. Não é por acaso que a simples imagem de Jared colocando o braço para fora da janela, com o carro em movimento, é tão libertadora: trata-se da metáfora perfeita para uma vida que, dali para a frente, será pontuada apenas pelas suas decisões. Jared é um adulto afinal. E sobre o seu corpo, cabe a ele decidir.

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