terça-feira, 7 de maio de 2019

Picanha.doc - Cabra Marcado Para Morrer

De: Eduardo Coutinho. Documentário / Drama, Brasil, 1984, 119 minutos.

Em certa altura de Cabra Marcado Para Morrer uma notícia de jornal dá conta da apreensão, por parte do exército brasileiro, de latas de filme, tripés, refletores e megafone que estavam sendo utilizados na filmagem de um documentário. "Foi talvez na Galileia (no interior do Pernambuco) que foram recolhidos materiais valiosos do maior foco de subversão comunista" garantia a chamada da matéria. "O maior foco de subversão comunista" em questão era na verdade o documentarista Eduardo Coutinho, seu cinegrafista e um fotógrafo que estavam no Nordeste para gravar um filme sobre a vida de João Pedro Teixeira, um líder camponês da Paraíba que foi assassinado em 1962 por ter cometido a maior das insubordinações: ser um dos fundadores da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco. Conhecida por "Liga", a entidade funcionava como uma espécie de Sindicato que reivindicava melhores condições de trabalho para os camponeses que trabalhavam em engenhos, combatendo ainda os abusos dos administradores dos latifúndios da região.

Era, portanto, uma figura que lutava por direitos. E que, consequentemente, era mal vista pelos militares que, à época, articulavam o Golpe Militar que eclodiria em 1º de abril de 1964. Coutinho pretendia "recriar" a história de Teixeira usando um outro ator em seu lugar e contando com a participação da verdadeira família do falecido líder - estando entre eles a viúva Elizabeth Teixeira -, além de amigos, vizinhos e outros conhecidos. Só que o documentarista conseguiu filmar apenas 40% da obra, que foi fortemente censurada nos conhecidos Anos de Chumbo. Manifestações artísticas ou culturais ou mesmo que valorizem algum outro tipo de educação - no caso, mais libertadora, pra citar Paulo Freire - normalmente não são bem vistas por um coletivo de reacionários toscos que iniciaria um intenso combate a uma "ameaça comunista imaginária" durante o Regime. Por lutar por direitos dos trabalhadores, aconteceu o óbvio: Teixeira foi acusado de comunista, de ter ligações com Cuba e com guerrilhas sulamericanas, tendo sido morto por milicianos comandados pelos senhores das terras.



Tudo isso está lá no documentário que, para falar a verdade, é construído de uma forma soberba, o que o transforma no melhor filme do estilo na história - de acordo com votação realizada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Com inacreditável perseverança, Coutinho retorna em 1981, após o começo da abertura política, a cidade de Sapé na Paraíba (onde iniciam as primeiras atividades das Ligas) e também ao Engenho da Galileia para retomar o filme de onde parou. No reencontro com os moradores, a mágica ocorre: ao se verem na tela dezessete anos atrás, aqueles atores "improvisados" se comovem, sorriem e se emocionam em um exercício metalinguístico que transforma Cabra Marcado Para Morrer não apenas em um documentário de "denúncia social", mas também em uma obra absurdamente comovente a respeito do poder transformador da arte e das múltiplas possibilidades alcançadas pelo cinema.

O diretor vai atrás das locações, de moradores que participaram das filmagens anos atrás e descobre que alguns já estão mortos e que mesmo o cenário pode ter se modificado com o tempo. Desaparecida por ter sido perseguida durante a Ditadura, Elizabeth agora está "exilada" no Rio Grande do Norte e pouco sabe do paradeiro dos mais de oito filhos que deixou para trás, com o objetivo de tentar sobreviver. Será na busca por cada uma dessas figuras, na escuta paciente, amparada por uma câmera semidocumental, que Coutinho irá no limite do "filme-reportagem", resgatando ele também a sua própria história, suas memórias, seus arquivos e a lembrança de anos que desejaríamos nunca mais precisar reencontrar.


A obra é uma joia que equilibra momentos mais melancólicos - como no terço final em que cada um dos filhos é reencontrado por Coutinho, com as memórias do passado evocando as mais variadas emoções - com outros de um inacreditável humor involuntário (como na sequência em que uma figura próxima de Teixeira relata ter sido questionado sobre a existência de "20 mil fuzis cubanos" nas matas nordestinas, em meio à Ditadura). É o filme raiz, seco, árido, nem sempre fácil, mas invariavelmente atual. E, mais incrível: também capaz de mostrar a força da articulação juvenil já que o filme foi patrocinado, inicialmente, pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE). Hoje em dia sabemos: a Ditadura perseguiu, torturou e matou centenas de pessoas naqueles anos. Teixeira foi um deles, assim como outros de sua época (como mostra o filme). Tudo o que queriam? Mais justiça social e um melhor olhar para pessoas à margem da sociedade ou em vulnerabilidade social. Que isso suscite tanto ódio, tanta repulsa, tanta ojeriza, é algo que, para este blogueiro e jornalista, segue sendo um mistério. E que dificilmente será solucionado tão logo.

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