segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Tesouros Cinéfilos - Delicatessen

De: Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro. Com Dominique Pinon, Jean-Claude Dreyfus e Marie-Laure Dougnac. Comédia / Ficção científica, França, 1991, 106 minutos.

Uma combinação eficiente de comédia com ficção pós-apocalíptica, com uma pitadinha de terror. Assim é possível resumir a experiência com Delicatessen - filme de estreia do diretor Jean-Pierre Jeunet (que ficaria famoso pelo clássico moderno O Fabuloso Destino de Amelie Poulain, 2001), em parceria com Marc Caro. Aqui, somos apresentados a uma espécie de distopia futurista em que nunca fica exatamente claro o contexto, ainda que alguns críticos tratem a obra como uma metáfora para a resistência durante a Segunda Guerra. A trama toda se passa em um único cenário, no caso um prédio em ruínas que abriga inúmeros apartamentos, que são comandados pelo severo senhor Clapet (Jean-Claude Dreyfus) que, ao mesmo tempo que é o senhorio, também atende como o açougueiro do local. Só que ali se vivem tempos de escassez. E não demora para que saibamos que a carne fornecida por Clapet aos inquilinos é de humanos - contratados pelo sujeito sob a desculpa de terem um emprego, para posteriormente serem mortos.

Só que após o mais recente assassinato, chega ao local um certo Louison (Dominique Pinon, que trabalhou em várias obras de Jeunet), um artista de circo desempregado que é designado por Clapet para a execução de serviços gerais do prédio decadente - e que podem ser de simples pinturas, passando por  reformas, até chegar à substituição de lâmpadas. Só que a ideia de dar cabo de Louison vai se complicar, especialmente depois de entrar em cena a filha de Clapet, Julie (Marie-Laure Dougnac), que se apaixona pelo novo "faz tudo", após um rebu envolvendo um pacote de deveria ser entregue a ela. Só que é preciso alimentar o pessoal do prédio - e tudo piorará quando os demais inquilinos passarem a se afeiçoar de Louison, dificultando as intenções de Clapet. Que, aliás, achará a solução com um pedido excêntrico a outro inquilino, Marcel (Ticky Holgado), que deve entregar a sua sogra idosa como moeda de troca.

Tudo parece meio complexo e talvez seja, mas o que pega aqui é não apenas o aparato técnico da produção - com suas cores amareladas e saturadas (que reforçam o aspecto decadente do ambiente) e seus ângulos de câmera geométricos e próximos -, que se somam a um sem fim de personagens e personalidades excêntricas que habitam o lugar. E que renderão, ao cabo, um sem fim de instantes tão aleatórios quanto inusitados. Há, por exemplo, em um dos apartamentos, uma senhora que insistirá em tentar dar cabo de sua própria vida (sempre sem sucesso). Há um outro que converte o seu apartamento em uma pocilga tão úmida, que sua principal companhia passam a ser os caramujos, os sapos e as pererecas. E há ainda dois meninos que trafegam de andar em andar, de ambiente em ambiente, conectando cada ato, em meio a estripulias variadas. E, como se não bastasse todo esse clima de devaneio, de sonho meio delirante, há ainda um sistema interno que permite a comunicação simultânea entre todos os os apartamentos.

É tudo bizarramente estranho, como se saído de uma peça do Teatro do Absurdo com um roteiro que bebe do realismo fantástico. Para uma estreia, não dá pra negar que Jeunet foi ousado, ao fugir do óbvio em uma roteiro que vai da alegoria política ao suspense de literatura pulp em segundos. Em alguma medida é meio difícil não se conectar com aquele cenário oniricamente macabro: os sujeitos são estranhos, a realidade é torpe. E há ainda um grupo de resistência que vive nos subterrâneos, de forma clandestina - os Troglodistas - e que, instigados por Julie, estabelecerão como meta sequestrar Clapet, o que poderia salvar a pele de Louison. Barulhenta, meio repulsiva e um tanto bizarra, essa é uma obra que une gêneros em uma grande coleção de sons, cores, imagens e que utiliza o seu microcosmo para um exercício que discute a quebra de sistemas opressores. O que é simbolizado pela perfeita sequência final, em que Louison e Julie executam juntos uma canção - com direito ao primeiro tocando... serrote. Impagável é pouco.


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