terça-feira, 19 de setembro de 2023

Cine Baú - A Bela da Tarde (Belle de Jour)

De: Luis Buñuel. Com Catherine Deneuve, Michel Piccoli, Pierre Clémenti, Jean Sorel e Geneviève Page. Drama, França, 1967, 105 minutos.

Uma jovem burguesa tentando aplacar o tédio e a falta de empolgação de seu próprio casamento - o que muito provavelmente também tem a ver com traumas sexuais do passado -, se convertendo em uma prostituta de luxo de meio período, que é requisitada por um sem fim de clientes, com seus fetiches, no mínimo, excêntricos. O resumo de A Bela da Tarde (Belle de Jour), um dos mais populares clássicos de Luis Buñuel, talvez sugira nas entrelinhas a iconoclastia e o espírito provocador que, quase sempre, marcaram a sua filmografia. Ainda assim, é curioso notar como esta é uma obra muito menos explícita do que se poderia imaginar. As tensões de dentro do bordel em que boa parte da narrativa acontece, em muitos casos se dão a portas fechadas, separadas por corredores distantes, entre frestas, enquanto do lado de fora as profissionais dialogam sobre amenidades ou tentam entreter clientes afoitos.

Claro, isso não significa que a obra - que venceria o Leão de Ouro no Festival de Veneza - reduz a sua ousadia, já que aqui a mera sugestão tem tanto poder quanto os atos em si. Catherine Deneuve como Sevérine é a representação daquela aristocracia fria que, a despeito de viver uma vida luxuosa e segura do ponto de vista financeiro - algo que se percebe inclusive pelos belos figurinos -, não consegue se sentir realizada quando o assunto é o sexo. Por mais que Pierre (Jean Sorel), o seu belo marido, pareça se esforçar para deixá-la confortável. Bom, eles sequer dormem juntos na mesma cama, mantendo distância e vivendo uma existência apenas protocolar, de dias repetidos, com pouca emoção. Resta a Sevérine, inicialmente, os sonhos, os devaneios, que parecem se confundir com a realidade. Em um dos primeiros, ela está com Pierre em uma carruagem, que percorre uma densa floresta. Após uma discussão, os homens - entre eles os cocheiros - passam a agredi-la, violentá-la. Até o instante em que ela irá despertar desse transe.

Esses episódios evidenciam o fato de que há algo que, vá lá, talvez perturbe a alma de Sevérine. Algum tipo de sentimento que lhe oprime. Uma frustração que, logo ali, se converte em impotência. Ou vai ver ela é apenas adepta de outras práticas que acredita impossíveis de cumprir com Pierre, casos do sadomasoquismo e de outras fantasias envolvendo dominação. Pode parecer apenas misógino ou machista. Mas a força da narrativa está justamente na forma como a protagonista busca superar o seu abalo emocional. E, de alguma maneira, se satisfazer. E que envolve justamente o bordel frequentado pela alta classe - local que é mencionado pelo atrevido amigo Henri Husson (Michel Piccoli), que não se furtará em elogiar os atributos físicos de Sevérine, na frente do marido desta. Perturbada ainda por memórias da própria infância, que sugerem algum tipo de abuso, a jovem vai parar no local, que é comandado pela carismática Madade Anaïs (Geneviève Page). Se convertendo ali na Belle de Jour do título original.

Ainda que seja um filme dos anos 60, é preciso que se diga que talvez este não seja um projeto para todos os paladares - especialmente para os espíritos mais conservadores ou menos adeptos de certos avanços. Em certa altura da projeção, por exemplo, um cliente leva Belle até a sua ampla propriedade - uma espécie de fazenda gigantesca - onde pede para que ela se finja de morta (com direito a caixão e tudo). Tão divertida quanto sombria, a sequência se encerra com o homem embaixo do caixão onde, aparentemente, se masturba. E, por mais que essas sequências possam soar grosseiras, elas são conduzidas com uma excêntrica elegância, com Sevérine flanando com delicadeza pelo ambiente, enquanto executa atendimento após atendimento a uma esquisitice atrás de outra. Estando entre os atendidos, um jovem de nome Marcel (Pierre Clémenti), que se apaixonará por Belle, e que lhe perturbará de todas as formas no terço final. Disponível na Mubi, A Bela da Tarde segue como uma experiência desafiadora, metafórica e cheia de ambiguidades que merece ser revisitada.


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