sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Novidades em Streaming - Carvão

De: Carolina Markowicz. Com Maeve Jinkins, César Bordon, Camila Márdila, Rômulo Braga e Jean Almeida da Costa. Drama, Brasil / Argentina, 2022, 108 minutos.

Vamos combinar que não são poucas as vezes em que o cinema pende para o maniqueísmo - até mesmo quando o assunto são as pessoas em vulnerabilidade social. E, evidentemente, não se deve jamais apagar o fato de que as minorias possuem as suas demandas e que a arte cumpre o papel, muitas vezes fundamental, de nos deixar alertas para este ou para esta ou aquela pauta. Ainda assim é importante que não percamos de vista a complexidade dos sujeitos - com suas imperfeições e dilemas morais -, ainda mais quando o que o está em jogo é a luta diária pela sobrevivência. Até onde se pode chegar na ânsia por uma existência menos miserável? Quando me deparei com um filme chamado Carvão, logo imaginei aquela experiência já quase batida de Brasil profundo, de denúncias de contrastes sociais, de escravidão moderna ou de outras questões relacionadas a um segmento famoso por não ser um fiel cumpridor de legislações trabalhistas - com direito a patrões carrascos e a peões sofridos, que nos deixariam estarrecidos, indignados.

E, sinceramente, importantíssimo esse tipo de projeto. Especialmente por dar visibilidade a temas relevantes em épocas de pós extrema direita, de precarização do trabalho, de perda de direitos há tanto conquistados, entre outros. Mas às vezes penso que pode haver certa saturação desse tipo de cinema que, ao cabo, é assistido sempre pelo mesmo público cinéfilo - no caso, os brancos classe média frequentadores de festivais ou do circuito alternativo, que estimularão o debate entre os seus, enquanto a coisa na raiz, efetivamente, pouco muda. Então o que Carvão faz, sem julgar se é certo ou errado, é subverter um pouco esse clichê. O cenário é sim uma comunidade rural do interior de São Paulo, onde uma família - pai, mãe, filho e avô moribundo - subsiste em meio a uma rotina de trabalho penoso de produção de carvão. Só que ao invés do simples drama familiar de superação de dificuldades, temos aqui um suspense cheio de reviravoltas, o que envolve uma série de decisões no mínimo questionáveis.

E isso arremessa o projeto pra um outro lado, meio inesperado, mas que não deixa de refletir as mazelas a que estamos acostumados. A obra já abre com uma certa sensação de desalento, que envolve um ambiente doméstico um tanto caótico, condição ampliada por uma música melancólica que sai de um rádio velho - que é escutado pelo pequeno Jean (Jean Almeida da Costa) e pelo seu avô, que parece ser alguém que sofre de severas complicações respiratórias, que certamente são fruto de anos e anos de insalubridade no trabalho nas carvoarias. Quando a assistente social (a ótima Rita Cortese) chega, ela é de uma sinceridade assombrosa: "aqui ele não vai melhorar não, com essas madeira podre caindo na cara, os cupim, esse lençol áspero ralando o c*, ele não vai melhorar da respiração não". E é justamente quando achamos que a profissional vai dar uma solução mais amistosa pra situação, somos surpreendidos pela primeira decisão questionável daquela família: e que envolverá abrigar, secretamente, em sua casa um traficante que está sendo procurado na região. O que renderá, óbvio e dado o risco da empreitada, uma polpuda quantia de dinheiro.

Bom, não é preciso ser nenhum adivinho pra saber que esse segredo que parecerá sempre pronto pra vir à tona movimentará a narrativa - especialmente quando a desconfiada vizinha Luciana (Camila Márdila) passa a rondar a propriedade da família, interessada em saber do avô doente. Com naturalismo impressionante, o que tem a ver também com as excelentes interpretações - é quase difícil acreditar que Jinkins e Braga não sejam carvoeiros de verdade, tamanho o realismo de suas entregas - a diretora Carolina Markowicz realiza uma obra nada óbvia que, a despeito de sua temática mais pesada, quase pende para um senso de humor meio histriônico e totalmente imprevisível. Especialmente no terço final, quando o cerco aperta e a família se vê refém daquele contexto. Com um desenho de produção eficiente - as locações reais e os elementos que compõem o cenário macambúzio e os figurinos paupérrimos são totalmente fidedignos -, o filme só peca na edição de som, o que é quase uma tradição de nosso cinema nacional, especialmente o mais contemplativo. No mais, excelente pedida, disponível pra aluguel no Now.

Nota: 8,0


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