sexta-feira, 5 de maio de 2023

Cine Baú - A Noite (La Notte)

De: Michelangelo Antonionni. Com Jeanne Moreau, Marcelo Mastroianni, Monica Vitti e Vincenzo Corbella. Romance / Drama, Itália / França, 1961, 122 minutos.

Vamos combinar que se há um sentimento que pode ser bastante incômodo quando o assunto são os relacionamentos, este é a indiferença. É a gente simplesmente não se importar mais com o outro, independente do que aconteça. E esse parece, ao cabo, ser o trágico destino do casal central que protagoniza o clássico de Michelangelo Antonioni, A Noite (La Notte), que estreou recentemente na Mubi. Segunda parte daquela que se tornaria conhecida como a Trilogia da Incomunicabilidade Humana - completada por A Aventura (1960) e O Eclipse (1962) -, a obra ampliaria o aspecto agonizante de uma relação amorosa desgastada. Condição reforçada pelos silêncios doloridos, pelos desencontros permanentes e pela tentativa desesperada de se reconectar a uma paixão que parece ter se perdido na rotina, no tédio e no vazio existencial. Mais difícil do que encerrar etapas talvez seja persistir em algo que, intimamente, todos sabem já ter chegado ao fim.

E é por isso que a obra de Antonioni talvez seja tão comovente. E tão incômoda. Quem já conviveu com algum casal que já acabou mas ainda não percebeu - daqueles que insistem em ficar juntos, mesmo sabendo que separados talvez fossem mais felizes - sabe como é. Pode ser que você mesmo seja essa pessoa. Que tentou até onde foi possível, sendo infeliz na companhia de alguém. Aqui o casal central é vivido por Marcelo Mastroianni e Jeanne Moreau. Ele, um escritor de certo renome chamado Giovani Pontanno, que está lançando um novo romance, que parece ter sido bem recebido pela crítica. Ela, a filha de um sujeito abastado, uma enigmática mulher chamada Lidia, que lhe acompanha em sessões de autógrafos enfadonhas e em outras atividades intelectuais. E conforme os eventos do filme - muitos deles pequenos, fortuitos - forem se descortinando, perceberemos cada vez mais a falta de conexão. O que os afasta de forma irremediável.

Lídia, por exemplo, não consegue sentir prazer genuíno em apenas acompanhar Giovani em seus compromissos. Num deles foge e, após vagar meio aleatoriamente pelas ruas, vai parar no bairro de Milão onde moravam como recém-casados. O silêncio é interrompido quando ela presencia uma briga sangrenta de gangues. Que é seguida por uma série de lançamentos de pequenos foguetes em um campo. É tudo bastante alegórico, sendo possível estabelecer nessas ocorrências ocaionais, uma correlação com o que a jovem sente. Onde ela busca algum tipo de fiapo de nostalgia, talvez estejam apenas os sentimentos conflitantes. Não há mais nada ali. O dia prossegue com o casal indo parar em um bordel onde assistem a uma hipnotizante performance erótica. Mas não há tesão que una os dois. Não há aquela conversinha safada que poderia derivar da experiência. Alguma promessa de calor que avance pela madrugada. Há apenas o enfado, a melancolia, a monotonia e o aborrecimento.

Na tentativa de conferir algum movimento a sua noite, a dupla vai parar em uma festa de um ricaço, um certo senhor Gherardini (Vincenzo Corbella). Afastados, cada um vai para um lado. Giovani se aproxima da insinuante filha do anfitrião, no caso a jovem Valentina (Monica Vitti) - ambos flertarão sobre um enorme tabuleiro de xadrez improvisado, em mais uma daquelas metáforas quase óbvias que envolvem o jogo das paixões. Em outro ponto, Lídia, talvez meio oprimida pela solidão vagueia como um espectro, se aproximando aqui e ali de outros convidados, dançando, tomando banho de chuva, vivendo. O beijo de Giovani em Valentina pouco lhe mobilizará - ela o flagra de uma estrutura elevada da casa. Ela mesma parece ter segredos que envolvem um homem moribundo em um hospital (que talvez fosse seu amante). De alguma maneira muita coisa acontece, com os personagens saltando de eventos em eventos, de encontro em encontro, como se estivéssemos em uma espécie de A Doce Vida (1960) - com toda a mesquinharia das elites -, só que num espectro muito mais sombrio.

Paradoxalmente charmosa e sexy, esta é uma obra sobre um casamento próximo do fim, que aposta muito mais no não dito do que no dito. A chave está nas sutilezas, nos olhares discretos, nos movimentos de corpo econômicos, ondulantes, pouco expansivos. Tudo parece comunicar nesse universo de incertezas que só será plenamente revelado quando do raiar do dia, na clássica sequência no campo de golfe. A banda toca um sinuoso jazz à distância que preenche todo o ambiente. "Tenho vontade de morrer porque já não te amo mais", comenta uma Lídia suplicante, antes de iniciar a leitura de uma carta de amor em voz alta. "Quem escreveu?" pergunta Giovani. "Você", responde Lídia consternada, naquele instante que eternizaria a dor de um casal sôfrego que passa uma madrugada de prazer hedonista, estando quilômetros de distância separados. Esnobado em premiações como o Oscar ou o Festival de Cannes, o filme ressurgiria mais tarde como a ponte perfeita entre A Aventura e O Eclipse, inclusive antecipando temas atualíssimos, que envolvem desde a fugacidade do amor, passando pelo sentimento de solidão (mesmo acompanhado) até mesmo a futilidade da burguesia. É impecável.

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